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Em tempos de luta antimanicomial, nada mais interessante do que retomar os inícios das formulações sobre o campo daquilo que foi denominado LOUCURA. Michel Foucault descobriu algo muito original em suas “escavações” arqueológicas dos saberes.
Acompanhe o Roberto Machado em sua fala e redescubra também outros modos de olhar e cuidar. O Laboratório de Sensibilidades é o divulgador deste vídeo e do texto transcrito.
Que ruptura é essa? O que Foucault descobriu de tão original e de tão importante?
A meu ver, é o fato de que somente em um momento recente da história ocidental, um momento que tem como marco filosófico a filosofia de Kant ou como marco político a Revolução Francesa, até esse momento ainda não existia a categoria de doença mental. Me parece que uma das grandes descobertas desse livro, livro que portanto é um livro conceitual e que nesse sentido se refere sempre ao que faziam os epistemólogos no sentido de criticar uma história meramente descritiva, factual, mas procura dar conta dos conceitos, sabendo muito bem que uma palavra é muito diferente de um conceito. Procurando privilegiar portanto as definições, Foucault chegou a conclusão de que conceitualmente era impossível falar de doença mental antes do séc. XIX, fundamentalmente antes de Pinel e Esquirol, que são os dois grandes criadores da psiquiatria. Quer dizer, o fato de que, antes de se tornar doença mental, com Pinel, Esquirol e outros psiquiatras dos séculos XVIII e XIX, a loucura era apenas doença. A loucura como doença, e não doença mental, uma doença como as outras, estava integrada num tipo específico de racionalidade médica próprio da época clássica.
Portanto, uma ruptura no nível das teorias, mais especificamente das teorias médicas, que chegou a conclusão da não existência de uma medicina especial para dar conta dela. E tentou ver, comparando tratados sobre loucura de séc. XVIII e XIX, que havia uma descontinuidade, uma incompatibilidade entre o que diziam esses médicos psiquiatras de uma medicina especial e aquilo que era dito sobre a loucura ainda na época clássica pelos médicos, no momento em que não existia propriamente ainda uma diferença entre o físico e o mental, para caracterizar dois tipos de medicina e dois tipos específicos de doença.
Pois bem, Foucault aprofunda esse aspecto da doença em seu livro “A História da Loucura”, que é um livro de 60 ou 61 e é a sua tese de doutorado. Em 63 Foucault, me parece que com as sobras daquilo que foi sua 1a. grande pesquisa, publicou um outro livro chamado “O Nascimento da Clínica”, onde ele justamente mostrará que essa medicina clássica, diferente da medicina moderna, é uma medicina, como ele chamou de, classificatória, uma medicina das espécies patológicas.
O sonho do grande classificador das doenças, Boissier de Sauvage, era ser ser o Lineu das doenças. Aquilo que Lineu fazia na botânica, na zoologia, na história natural, Boissier de Sauvage procurou fazer no campo das doenças. Quer dizer, há um privilégio dos sintomas. A doença é o conjunto de sintomas e classificar doenças é estabelecer identidade e diferença entre elas a partir desse aglomerado de sintomas.
Portanto, a medicina clássica é uma medicina classificatória, uma medicina das espécies patológicas que, seguindo o modelo da história natural, tal como ela faz com relação às plantas e aos animais, procura estabelecer identidades e diferenças entre as doenças, organizando um quadro. E é isso que é classificar, organizar um quadro em termos de classe, ordem, gênero e espécies.
Primeira conclusão: Não há, na época clássica, uma medicina especial como a medicina psiquiátrica, que se funda na distinção entre o físico e o mental. As doenças estavam no mesmo nível e, nesse espaço nosográfico (nosografia = descrição metódica das doenças), estavam classificadas de acordo com seus sintomas. Não há uma natureza específica da doença mental como passará a existir no momento em que nasce a anatomo-clínica, como medicina orgânica moderna, e a psiquiatria, que defenderá um tipo de doença que em princípio seria original com relação a essas doenças orgânicas que eram estudadas a partir da anatomia patológica, na chamada anatomo-clínica. É a revolução de Bichat, de Laënnec, etc. e que Foucault estudou nesse livro “O Nascimento da Clínica”, que procura contrapor esses dois tipos de racionalidade médica.
Portanto, apesar das dificuldades, das resistências, dos obstáculos que o conhecimento da loucura, na época clássica, encontrou para se integrar na racionalidade médica da época, pode-se dizer que, de um modo geral, a loucura é uma doença como as outras, só que com sintomas diferentes.
Então eu dizia, na tentativa de dar uma idéia geral desse livro que me parece importante, Foucault estabeleceu, no nível da teoria da doença, uma ruptura entre a racionalidade clássica e a racionalidade noderna em termos de conceito de doença mental e da doença tal como era entendida na época clássica (sem distinguir o físico e o mental).
Segundo tipo de ruptura: no nível das práticas. Em “A História da Loucura” Foucault estabelece uma ruptura ainda mais importante e cheia de conseqüências do que essa que eu acabo de assinalar. É a seguinte: Antes da Revolução Francesa, antes de Pinel e Esquirol, não havia propriamente hospital psiquiátrico, não havia uma instituição terapêutica para os loucos, para os loucos considerados como doentes mentais. Portanto, num nível não havia doentes mentais e, por outro lado, não existiam hospícios, não existia hospital psiquiátrico.
Aquilo que foi chamado Hospital Geral, criado na França por Luís XIV em aproximadamente 1656, é um marco político importante de um tipo de lidar, não propriamente com a loucura e sim, com o louco (veja como eu estou estabelecendo dois níveis para esses termos). É, portanto, marco importante daquilo que, usando a terminologia da época, Foucault se apropriou e chamou de “o grande enclausuramento clássico”. Portanto, uma ruptura entre o hospital psiquiátrico moderno e o grande enclausuramento clássico em meados do séc. XVII. Curiosamente, a época de Descartes é a época da grande exclusão da loucura da sociedade.
Esse grande enclausuramento, estudado exaustivamente por Foucault nesse livro, não é propriamente uma instituição médica. Segundo ele, se trata de uma entidade assistencial original, que ele situa entre a polícia e a justiça e, com sua linguagem jocosa, sugere tratar-se do que ele chama de “ordem terceira da repressão”. Quer dizer, é um entidade coercitiva, repressiva que nada tem a ver com as questões da essência da loucura e da recuperação do louco, mas que tem tudo a ver com a exclusão de indivíduos considerados perigosos porque associais.
Pois bem, eu queria chamar atenção para uma frase que me parece muito importante para entender esse grande livro, é uma curta frase que diz o seguinte: “O século XVIII (ou a época clássica) deduz a loucura, mas percebe o louco”. Essa frase é muito importante porque ela aponta para uma espécie de dicotomia estrutural constitutiva da questão do louco e da loucura nesses séculos XVII e XVIII. Quando ele diz: “o séc. XVIII deduz a loucura”, ele está remetendo ao conhecimento da loucura, ao conhecimento médico da doença. Está chamando de dedução da loucura o estabelecimento dessa classe de doença através de uma medicina das espécies, uma medicina classificatória. Então, a loucura fazia parte dessa racionalidade médica e era deduzida por essa árvore do raciocínio da argumentação, do mesmo jeito que as outras doenças.
Mas, diz Foucault, ao mesmo tempo que o séc. XVII ou XVIII conhecem a loucura, percebem o louco. Como se a percepção do louco como corporiedade, como materialidade, fosse independente da teoria da loucura. O que é bastante condizente com a teoria médica clássica, onde há a idéia de que o conhecimento médico parte do exame do corpo para conhecer os seus sintomas. E, mais ainda, a partir de Bichat, do exame do cadáver. A partir dessa idéia de que a noite da morte esclarece o dia do corpo sadio (que é o grande conselho de Bichat ). Dizia ele para seus alunos: “Se vocês querem ser médicos, não adianta passar pelo leito dos doentes anotando seus sintomas. Se vocês querem saber o que é doença, abram alguns cadáveres”. A partir de então é justamente o momento fundador da medicina moderna, porque a anatomopatologia se encontra na sua base.
Pois bem, esse é o momento em que a percepção e o conhecimento se juntam, é a modernidade. Foucault tenta mostrar que na época clássica, a maneira como se lidava, como se relacionava socialmente com o louco não é guiado pelo conhecimento que se tem da loucura. Hoje para alguém ir para um hospício é preciso um atestado médico, é preciso que o médico seja capaz de encontrar nele a loucura. Quer dizer, na modernidade é o médico quem tem o poder de diagnosticar a loucura.
Nem sempre foi assim. No séc. XVIII, Foucault, que analisou as cartas régias na França e esses processos de internação, via muito bem que não existia esse poder da medicina sobre a loucura, justamente por essa independência do louco e da ação sobre o louco com relação a esse conhecimento teórico médico sobre a loucura.
Portanto, eu dizia, a frase que mais ajuda a compreensão de “A História da Loucura” é essa: “A época clássica deduz a loucura, mas percebe o louco” de uma maneira independente de como ela conhece a loucura.
Foucault, então, vai evidenciar como esse chamado hospital geral (inaugurado por Luís XIV) e esse grande enclausuramento clássico constituem-se de uma população que, para nossos olhos modernos, medicalizados, humanizados aparece como heterogênea, mas que para a percepção da época clássica é perfeitamente coerente.
Portanto, o fato de considerar alguém como louco e isolá-lo numa instituição que não é terapêutica, mas que é fundamentalmente repressiva, está ligado a constituição de uma população totalmente diferente do fenômeno da loucura como nós conhecemos na modernidade (como doença mental), mas inteiramente, perfeitamente coerente com o que pensava moralmente, socialmente a época clássica.
É como ele diz, a percepção agrupa tudo aquilo que aparece como outro, como outro da razão, como diferente, um estrangeiro aos olhos tanto da razão como da moral, ou de uma razão moral e social. E, por isso mesmo, seria, nesse momento, classificado como desrazão, desatino.
Então, Foucault diz: o hóspede desse hospital geral é mais do que o louco. Em todo caso, não é o louco individualizado, percebido em sua especificidade. É o louco como um elemento de um a população mais englobante, formada de desrazoados, de desatinados. Que população é essa? Foucault mostra que é uma população que engloba fenômenos que dizem respeito à sexualidade. Melhor ainda, à transgressão da sexualidade. Por exemplo, foram internados nesse grande enclausuramento doentes venéreos, e mais que isso, doentes venéreos que tinham pego a doença fora da família. Quer dizer, com a prostituição. Então, o próprio doente venéreo se transformava em caso de polícia, e era caracterizado, nesses casos, como um desrazoado. Ou então a prostituta, ou o sodomita.
Quem já leu Foucault, sabe que homossexual é uma criação recente, do séc. XIX. Foucault tenta chamar a atenção para essa nomenclatura. Mesmo que não seja uma nomenclatura científica, é mais que uma terminologia vaga, é uma terminologia que tem um sentido conceitual profundo e que, mesmo que não faça parte de nenhuma ciência real, pode ser estudada conceitualmente. Isso porque talvez não diga alguma coisa cientificamente, mas diz alguma coisa.
Então, Foucault chamou a atenção para isso, a homossexualidade, embora a gente hoje use isso corriqueiramente, é uma terminologia nascida pela medicina, nascida na medicina, nascida na psiquiatria. E é alguma coisa que não diz respeito só ao ato, é alguma coisa que diz respeito a um comportamento. O psiquiatra vê o homossexual como um bicho estranho, que tem uma determinada configuração, independente daquele ato, que seria somente a expressão de um tipo de vida. Ora, isso não acontece com o sodomita.
Nessa instituição, ao lado de doentes venéreos e de prostitutas, quando consideramos essa população que foi internada por transgredir a sexualidade, se encontra também essa categoria do sodomita, que é muito mais uma categoria legal do que propriamente médica.
Ao lado disso, Foucault encontrou uma outra categoria trancafiada nessa instituição e que ele usou um termo da época para caracterizá-la que é “desordem do coração”. Um desordeiro do coração é alguém acusado de magia, feitiçaria, ou ainda, alquimia.
Terceiro tipo de elemento que constitui essa população: a libertinagem, o libertino (livre de qualquer peia moral, devasso, dissoluto, depravado, licencioso). E aí vocês talvez não ignorem que Sartre foi um dos elementos mais célebres dessa população.
Pois bem, a idéia de Foucault é que nesse grande enclausuramento você encontrava trancafiado ao lado dos delitos contra a sexualidade, dos delitos contra a ordem do coração e ao lado da libertinagem, você encontrava, finalmente, o louco. Era essa a população, para nossos olhos, heterogênea, mas que para a época não deveria ser assim tão heterogênea, no sentido que a partir dos mesmos critérios essa população foi constituída.
Para concluir, o louco na época clássica (e não portanto a loucura) é parte integrante de um perigo que a razão clássica, não como a razão pura, científica, médica, mas sim como a razão moral e social classifica e ao mesmo tempo desclassifica como desrazão, como ausência da razão, como negatividade da razão, e assim exclui da sociedade.
Logo, dizer que o racionalismo clássico é puro é dizer que ele se purificou com a exclusão, a recusa e o desprezo de toda uma população que escapava dos seus limites.
Portanto, concluindo os dois primeiros pontos, há uma ruptura tanto entre as noções de doença mental e de doença (é o nível de dedução da loucura), quanto, em um segundo nível, entre o hospício moderno como instituição terapêutica e o grande enclausuramento, no que diz respeito às práticas de enclausuramento do louco.
Mas (eu vou tentar agora ligar esses dois aspectos), só poderá seguir o fio da argumentação de “A História da Loucura” quem se der conta de que essas rupturas entre época clássica e modernidade não são totais. As teorias e as práticas não são para Foucault nesse momento independentes do que se passou. Portanto, para se dar conta do que Foucault pretende evidenciar com esse livro é necessário levar em consideração que entre modernidade e época clássica há sempre condições anteriores históricas de possibilidades.
Tomando o exemplo da loucura, esse primeiro grande livro de Foucault é uma crítica da razão, é uma análise dos limites da razão, uma análise das fronteiras que, em épocas diferentes, a razão estabelece e desloca, excluindo o que ameaça sua ordem. Mas, além disso, esse deslocamento descontínuo (é a questão da ruptura) de fronteiras é um processo, e um processo orientado, que tem um determinado sentido, que se faz do sentido de uma crescente subordinação da loucura à razão e que tem como última etapa a nossa etapa, a etapa moderna, a psiquiatria ou aquilo que Foucault chamou várias vezes de “psicologização da loucura”, que é uma radicalização de um processo histórico, mas mais ainda de um processo histórico de dominação. O que significa dizer que a psicologia, a psiquiatria se constitui na época moderna, mas se constitui a partir de condições de possibilidades que são anteriores.
Mas isso não é tudo, eu acho que para entender todo o alcance dessa formulação de condições anteriores históricas de possibilidade, aquilo que ocasionou, que possibilitou o surgimento da modernidade nesse campo específico, é preciso se dar conta de que toda argumentação de Foucault aponta não só para as origens dessa psicologização, e sim para aquilo que eu chamaria de suas baixas origens, que seriam origens não propriamente teóricas e sim práticas, usando uma terminologia mais recente do Foucault, origens que se dão em termos de relações de poder ou de relações de força. Eu diria, numa terminologia da época de A história da loucura, essas origens dessa psicologização moderna são as condições históricas de possibilidade mais institucionais do que teóricas.
O que eu estou querendo dizer com isso é que a psicologização da loucura é fundamentalmente o resultado de um processo de humanização, que na época da revolução francesa instaurou novas técnicas de controle social.
Foucault diria: a libertação dos loucos realizada por Pinel é um simples eufemismo. Quer dizer, quando eu falo de baixas origens, ou origens mais institucionais do que teóricas, eu estou querendo assinalar o fato de que foi menos o exame médico que especificou a loucura, que examinou o louco, que individualizou o louco, constituindo-o como doente mental, do que a organização, o funcionamento e a transformação de instituições de reclusão.
Quer dizer, esse nível da prática ou das instituições, para Foucault, enquanto análise da constituição desses saberes da modernidade é mais importante do que propriamente o nível das teorias ou dos conhecimentos.
Concluindo esse ponto, a loucura só foi objeto de conhecimento científico na modernidade porque foi o primeiro objeto de excomunhão moral e social. Daí, e é uma das frases lapidáveis e terríveis de Foucault, daí Foucault ser tão incisivo ao dizer o seguinte, que é como que uma provocação, um desafio que ele coloca aos profissionais da época, pensarem as suas origens, ou as suas baixas origens, que é o papel do historiado filósofo dos saberes. A frase é essa, que eu digo com minhas palavras, mas o sentido é esse: “A psicologia jamais poderá enunciar a verdade da loucura, porque é a loucura que detém a verdade da psicologia”. Quer dizer, a psicologia é o resultado de um processo onde a loucura foi constituída a partir de relações fundamentalmente de forças, que seriam as baixas origens dos saberes psicológicos sobre a loucura.
Foucault nega que a medicalização, que a psicologização da loucura sejam o resultado de um progresso. Vejam que ele faz o contrário do que faziam os epistemólogos. Bachelard chegava a dizer: “a ciência é o único lugar onde nós podemos provar a existência de um progresso”. Para o epistemólogo, a ciência é o itinerário do entendimento, ou da razão para a verdade. Bachelard dizia: “nunca se vira uma decadência científica numa ciência, a ciência sempre progride”. O que significa dizer, o máximo, o ápice da racionalidade de uma ciência é a última linguagem falada por essa ciência. E é por isso que os epistemólogos partem da atualidade, dos conceitos mais bem elaborados de uma determinada ciência, voltam atrás, quer dizer, recuam no tempo, e procuram descrever, lucidar, a história racional daquela ciência, que é a história de uma descoberta progressiva e sempre mais atualizada da racionalidade. É isso que fazem os epistemólogos.
Foucault, embora profundamente marcado pelo método de seus professores, não segue cegamente o que fizeram seus mestres. Há uma relação com a epistemologia, mas não é uma relação de servidão. Assim sendo, Foucault nega que haja um progresso que tenha levado ao desvelamento progressivo da essência da loucura na modernidade, como diria um psicólogo ou um psiquiatra.
Canguilhem, que foi seu orientador de tese, chegou a dizer que um dospontos altos do livro é o questionamento das origens do estatuto científico da psicologia. Digamos que isso que disse Canguilhem é verdade, mas digamos isso para imediatamente perguntar (e é isso que está me interessando): Como é possível colocar em questão o estatuto de cientificidade da psicologia se, diferentemente dos epistemólogos, Foucault não privilegiou progresso de uma ciência e, mais ainda, não toma a cientificidade ou racionalidade científica, definida pela atualidade de uma ciência, como uma norma para avaliar o passado, a história da psicologização da loucura, como faz a epistemologia?
E com efeito, Foucault enuncia explicitamente no prefácio do livro que, ao fazer “A História da Loucura” ele não quis partir de verdades terminais (e eu acho que o termo é maravilhoso na sua ambigüidade) que são justamente as últimas verdades, mas são, ao mesmo tempo, aquelas que estão a ponto de morrer. Ele quis, isso sim, se desvincular de qualquer verdade psiquiátrica, quis usar uma linguagem que ele chamou de neutra e que eu interpretaria como sendo uma linguagem livre da terminologia científica. E quis fazer tudo isso para ser capaz de se aproximar das palavras da loucura, das palavras do louco. Quer dizer, utiliza-se de uma linguagem sem apoio científico para ir até o fundo, que seria o lugar da loucura, e trazer à superfície da linguagem da razão as condições de sua separação com relação à loucura. A linguagem racional, científica sobre a loucura, ao invés de desvelar, de revelar, de descobrir a essência da loucura, para Foucault encobriu, velou.
Portanto, seria necessário escapar de uma outra linguagem científica ou racional para ser acolhedor a essa palavra e colocar em questão essa antinomia que é constitutiva do próprio nascimento da razão clássica e da razão moderna. Como Foucault pôde fazer isso? Como ele pôde ser crítico à psicologização da loucura se ele não partiu de um discurso da própria razão para mostrar a insuficiência das formulações científicas? Quer dizer, como ele foi capaz de fazer uma crítica se ele não fazia uma crítica da razão pela razão?
Eu diria, e é talvez a hipótese mais importante: Se Foucault pôde não partir do que ele chamou, verdades terminais, se ele pôde usar uma linguagem sem apoio na razão científica (psiquiatria, psicanálise), sem, ao mesmo tempo, ter se contentado com uma história meramente factual, meramente descritiva (ele era discípulo dos epistemólogos que faziam uma história conceitual); se ele foi capaz disso é porque ele partiu daquilo que ele chamou de “experiência trágica”. Estou entrando em outro ponto dessa exposição.
Ele privilegiou, não a última verdade de uma ciência, mas aquilo que escapava a ciência da loucura, que é a experiência trágica como sendo um valor positivo para avaliar as teorias e as práticas históricas sobre a loucura e o louco. Significa que a loucura, tal como aparece nesse livro, além de figura histórica (que se modifica com o tempo) é também e fundamentalmente uma experiência, mais ainda, uma experiência trágica, no sentido de uma experiência originária de uma realidade essencial e poderia dizer mesmo de uma verdade ontológica. E foi essa experiência originária que a razão encobriu, ocultou, mascarou e dominou, embora não tenha destruído totalmente. A razão, no entanto, teria encoberto, e não descoberto, a essência da loucura, e teria feito isso simplesmente por ela ter se mostrado ameaçadora e perigosa para a ordem da razão.
A meu ver, a idéia de uma experiência trágica da loucura e a função que ela desempenha nesse livro chamado “A História da Loucura” é o que mais afasta o livro da epistemologia e mais o aproxima da filosofia de Nietzsche, sobretudo, do modo como a filosofia de Nietzsche é formulada também no seu primeiro livro que é “O Nascimento da Tragédia”. Pois qual é o objetivo final de “O Nascimento da Tragédia”? É uma denúncia da modernidade como uma civilização Socrática.E é muito interessante que o primeiro Foucault é um Foucault que estabelece uma ruptura entre modernidade e época clássica para explicar ou para criticar o humanismo da modernidade.
Nietzsche, que é um crítico da modernidade, faz uma crítica da modernidade que não estabelece uma ruptura tão curta. Ele foi muito além, recuou muito mais no tempo e denunciou a civilização moderna como sendo niilista ( niilismo = descrença absoluta; (et.)doutrina segundo a qual não há verdade moral nem hierarquia de valores; (filos.)doutrina segundo a qual nada existe de absoluto), como sendo a negação da própria vida, voltando aos próprios gregos, voltando a esse momento de constituição da metafísica clássica, que é o momento da instituição da razão, e de uma razão dicotômica, quer dizer, que produz as diferenças, as dicotomias, as oposições, que Nietzsche chama de “oposições metafísicas”, entre verdade e erro, bem e mal, eternidade e tempo, e assim por diante.
Então, a meu ver, Foucault segue uma inspiração Nietzcheana de crítica do niilismo da modernidade, no caso de Foucault o que ele chama de “humanismo da modernidade”, no sentido em que esse primeiro livro “O Nascimento da Tragédia” procura denunciar a modernidade como uma civilização Socrática, racional, por esse desejo ilimitado de verdade, por seu espírito científico ilimitado. E, ao mesmo tempo que Nietzsche critica a modernidade por ser niilista, ele saúda o renascimento de uma experiência trágica do mundo, renascimento que ele vê em algumas das realizações filosóficas e artísticas da própria modernidade.
Agora, como é que Nietzsche vai relacionar essas criações filosóficas e artísticas da modernidade que ele vê como uma positividade. É porque ele vai procurar traçar uma continuidade como esse mundo grego que é o mundo da experiência trágica grega. Quer dizer, “O Nascimento da Tragédia” tem como que três partes: nos primeiros itens, ele estuda o nascimento da tragédia como Ésquilo e Sófocles, nos cinco seguinte estuda a morte da tragédia a partir de Sócrates e aquilo que ele chama de Socratismo estético e, finalmente, nos últimos itens estuda o renascimento da tragédia que ele procura situar em algumas filosofias e algumas obras de arte da modernidade.
A base da experiência trágica está nessa tragédia está nessa tragédia grega, que durante um determinado momento (no máximo uns cem anos) possibilitou (e esse é o grande elogio da arte que Nietzsche faz nesse livro) pela arte a experiência do lado terrível, tenebroso, cruel da vida. E é isso que ele acha que a razão não pôde suportar, e por isso estabeleceu dicotomia de valores para aleijar como erro, como mau aquilo que é difícil tragar na nossa existência.
Para Nietzsche, a vida, o mundo, a existência têm uma ferida que é impossível de ser sanada, de se curada, como quer o otimismo da razão e que para a crítica da razão de Nietzsche tem origem com a metafísica socrática-platônica.
Me parece que o conceito mais importante do nascimento da modernidade é esse conceito de experiência trágica, que permite, pela arte, que o homem vivencie esse lado terrível, tenebroso, cruel da vida, sem ser destruído por ele. Quer dizer, a arte trágica dionisíaca é uma forma de intensificar a própria alegria de viver. Mas esta experiência trágica, que vigorou nesse momento que Nietzsche considera como sendo o ápice da humanidade, foi reprimida, sufocada, invalidada pelo Socratismo, pelo Platonismo, que justamente subordina a criação artística à compreensão teórica. Ou então, foi reprimida pela metafísica, que criará a oposição de valores (bem/mal, verdade/ilusão, etc.), oposição de valores que está na origem da razão e que ele procurou desmistificar sem se situar no próprio nível da razão.
Veja como é parecido o que fez Nietzsche com o que fará o jovem Foucault na sua tese de doutorado. Do mesmo modo que para Nietzsche a história do mundo ocidental é a recusa, o esquecimento da tragédia (ou dessa experiência trágica da vida, que é a única maneira de dar intensidade e alegria a própria vida), a história da loucura, tal como Foucault interpretou, é a história do vínculo da racionalidade moderna, tal como aparece nas ciências do homem em um longo processo de dominação, que ao tornar a loucura objeto de ciência, a despossuiu de seus antigos poderes. São esse poderes os de uma verdade originária de uma experiência trágica.
Uma citação de Foucault: “A História da Loucura é um livro escrito sob o sol da grande pesquisa Nietzscheana”. Eu diria, se A História da Loucura é uma livro escrito sob esse sol da pesquisa Nietzscheana é, antes de tudo, porque nele a história da relação entre loucura e razão (que considerou, segundo Foucault, a loucura como uma negatividade) é realizada a partir daquilo que ele chamou de “as estruturas atemporais do trágico”. E se a hipótese de uma experiência trágica é decisiva no livro é porque apenas essa experiência permite dizer a verdade da psiquiatria. Lembrem: “a psicologia, a psiquiatria nunca dirão a verdade da loucura porque a loucura (como experiência trágica que foi reprimida) que detém a verdade da psiquiatria”. Quer dizer, se essa hipótese da experiência trágica da loucura é decisiva no livro é porque ela que dizer a verdade da psiquiatria, a verdade da psicologização da loucura. Em outros termos, que permite situar a racionalidade sobre a loucura num processo histórico, que é um processo de controle, de um controle que tem um sentido, de um controle cada vez mais eficaz efetuado pela razão. Controle esse que evidencia como a cultura rejeita a sua parte “maldita”.
Para concluir eu vou estabelecer de uma maneira sintética esses três momentos dessa história de um controle que levou a esse humanismo da modernidade.
No renascimento, entre outras coisas, ele descobre uma hospitalidade para a loucura. Não havia enclausuramento, não havia reclusão da loucura. Os loucos normalmente eram colocados em barcos e navios que navegavam pelos rios da Europa, que se reuniam em determinados lugares, que faziam seus festivais de loucura. Havia mesmo eleição para saber quem era o louco mais louco. Havia uma literatura da loucura que era lida, que era consumida nessa época.
No renascimento, apesar dessa estranha hospitalidade que em geral vigora para como a loucura, começa um incipiente controle, que se faz através daquilo que Foucault chama de “crítica mora”. Quer dizer, é no renascimento que a loucura vai ser situada como ilusão.
Filosoficamente é o momento de Erasmo e de Montaigne, momento em que essa experiência trágica do homem no mundo, que ainda se expressa livremente na iconografia com Bauch, com Brabel(?) e mesmo no teatro, por exemplo no teatro barroco, essa experiência trágica vai se julgada, subordinada a uma experiência crítica que vai privilegiar o saber já a verdade e a moral. Por isso vai colocar a loucura como ilusão.
(…Pedaço cortado…)
É o momento, como talvez vocês todos saibam, de Descartes. É o momento onde a loucura é excluída pelo sujeito que duvida (Foucault faz uma análise das Meditações Metafísicas de Descartes). É o momento em que o pensamento se torna condição de impossibilidade da loucura. A idéia é essa: se eu penso, não posso ser louco e se eu sou louco não posso pensar.
Veja o que diz Foucault para comentar as Meditações de Descartes: se o homem pode sempre ser louco (cada um de nós na época clássica poderíamos enlouquecer), significa dizer que é o outro do pensamento, é delírio do pensamento.
Na modernidade, a loucura não diz mais fundamentalmente respeito ao pensamento, diz respeito à vontade, aos instintos, ao desejo. Então a loucura a partir de Pinel e Esquirol não será fundamentalmente delírio. Tanto que Pinel ou Esquirol descobrirá um conceito que aterrorizou os juristas da época, é a idéia de “monomania”. O que é um monomaníaco? Um maníaco todo mundo sabe, é um delirante. O monomaníaco é alguém que é normal em todos os aspectos da vida, menos um. Ele tem uma esquisitisse, só que essa esquisitisse varia. Pode ser religiosa (monomaníaco religiosa) o que não tem muito problema. Mas existe um tipo de monomania que é perigoso, é a monomania homicida. Você é totalmente normal em todos os sentidos da vida, só que você tem um “probleminha”: de vez em quando gosta de matar alguém. E os médicos e os juristas ficaram apavorados, porque se é assim todo mundo vai ser inocentado. Foi necessário Esquirol escrever artigos e mostrar que a situação não iria ser melhor, porque ele não vai para a cadeia, mas vai para o manicômio judicial (como existe até hoje).
Então, o interessante é isso, uma patologização da justiça. Como essa normalização médica penetrou todos os campos da sociedade.
(…Pedaço cortado…)
Mas o pensamento, enquanto tal, não pode ser insensato, não pode ser desrazoado. Trata-se de uma linha divisória que logo tornará impossível a experiência tão familiar ao renascimento, de uma razão desrazoável ou de uma razoável desrazão. E Foucault conclui que entre Montaigne e Descarte, algo se passou, algo que diz respeito ao nascimento de uma racio, ao nascimento da razão clássica que vigora ainda na modernidade.
Montaigne, meditando sobre um poeta italiano, Torquato Tasso, o admira, perguntando-se se seu estado lastimoso (ele estava louco) não se deve a uma clareza grande demais que o teria cegado. Uma clareza grande demais que existiria na loucura que essa sim o teria cegado.
O que vigora agora é uma incompatibilidade absoluta entre o pensamento e a loucura. Incompatibilidade que tem como conseqüência a sua redução ao silêncio. Exclusão do pensamento correlata a uma exclusão da sociedade. Momento decisivo da história ocidental, em que o homem como razão, como exacerbação da sabedoria do sujeito, desse sujeito capaz de conhecer a verdade, se torna impossibilidade da loucura.
Finalmente, terceiro momento dessa pequena história do controle da loucura.
Na modernidade o clausério histórico de controle que Foucault pretende evidenciar, atinge o máximo, o ápice de sua eficácia através do nascimento das ciências do homem, ciências que, aceitando a loucura como alienação, a patologizaram pela primeira vez na história, criando a categoria de doença mental e transformando o louco em doente mental, que deveria habitar, viver em uma instituição terapêutica.
Esquirol em seu livro sobre doença mental ensina como construir um hospício. E ele diz justamente: “um hospício é uma instituição importante demais para ser entregue aos construtores”. Ele teria que ser construído pelo médico, porque é uma instituição médica e é enquanto construção que o hospício cura. O que cura a loucura seria, segundo o grande psiquiatra do início do séc. XIX, o próprio hospício. Quer dizer, é uma grande teoria médica do enclausuramento.
É o momento de Hegel, que no parágrafo 408 da sua enciclopédia, onde por sinal ele faz elogio de Pinel, vai defender (veja a diferença entre modernidade e época clássica) que o louco deixou o seu gênio mal triunfar de dentro dele e, diferentemente de Descartes ele diz, mas ele não perdeu a razão. Para Descartes a loucura é o outro do pensamento e era por isso que na época ele era acorrentado nessas masmorras e assim por diante.
Chega Pinel (1794), que foi mandatado pela revolução francesa para estudar, para dirigir essas masmorras e ele encontra os loucos presos e muitas vezes os ratos que vinham comas cheias dos rios comiam partes de seus corpos, etc.. Isso é contado pelo sobrinho, que escreveu um livro elogioso sobre o ato de libertação dos loucos. Pois bem, Pinel para olhos apavorados dos líderes da revolução que o acompanhavam, se aproximou dessas feras, desses animais selvagens e libertou-os, desacorrentou-os. E como que miraculosamente (milagre da ciência) por aquele ato libertatório, do renascimento da liberdade como valor político, ao recobrar a liberdade, eles recobram a razão. Então, a loucura não é a ausência da razão. É um adormecimento da razão que pode ser sem dúvida recuperada.
Veja o que diz Hegel: “o louco deixou que o gênio mal da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão”. Continua tendo consciência do bem e do mal. E o terapeuta pode assim apoiar-se no que diz de racional l doente para devolvê-lo ao melhor de si mesmo, que é a razão.
Deixando de se erro, falsidade, não ser, em suma desrazão, como na época clássica, a loucura, agora doença mental, passa a dizer respeito a alma. (Lembrem que na época clássica não existe diferença entre corpo e alma.) Agora, a loucura penetrou na alma. Daí a psicologização da loucura, a loucura passa a inteira tutela da razão. Antes era o outro da razão, agora faz parte mesmo do homem de razão, só que ela é parte adormecida, encoberta e precisa ser desvelada, trazida a tona pelo médico, pela figura terapêutica. É que se na loucura o homem pode aparecer alienado, afastado de si mesmo, estrangeiro a si mesmo, a ação do terapeuta que é uma ação eminentemente moral.
A principal categoria terapêutica do início do séc. XIX era o tratamento moral. O médico clássico achava que podia curar a loucura, por exemplo, dando banhos ou duchas, que eram utilizados para determinadas doenças. Então, a ducha ou o banho de imerção tem o sentido de uma terapêutica física como outra qualquer, que pode ser usada para loucura ou para outras doenças.
Quando o médico moderno humanista, portanto a psiquiatria, usa uma ducha fria, a ducha tem o sentido de punir uma culpa. Um exemplo muito interessante desse psiquiatra francês chamado Lenese, é que ele tinha um paciente em Paris, que dizia sempre que era inglês e que morava em Londres. O que ele faz? Ele resolve mostrar ao paciente que ele não é inglês coisíssima nenhuma e que não mora em Londres. Ele faz uma viagem de carruagem com esse louco e mostra aqui é o Arco do Triunfo (que nem existia na época). Então o sujeito concorda, nós estamos em Paris. Muito bem. Quando ele chega no hospício ele pergunta para o louco: quem é você? Eu sou inglês e moro na Inglaterra. O que ele faz? És inglês, então ducha fria nele. E depois da ducha ele pergunta: você ainda é inglês? E até o momento que ele não agüenta mais e nega.
Existe também outro tratamento importante que usa métodos físicos para atingir o moral, é o célebre purgante. O sujeito reage a força do médico, então o médico diz para o carcereiro ou para a enfermeira dar um purgante para ele. No outro dia o cidadão está todo sujo, todo borrado e o médico diz: Como? Não era você que queria me afrontar e basta eu me aproximar e você já está assim.
Isso parece brincadeiras, mas são consideradas como tratamentos normais e são escritos por grandes teóricos da psiquiatria do séc. XIX, que demonstrou que, embora o doente mental, considerado como alienado, esteve afastado de si mesmo, essa ação terapêutica, evidentemente moral, pode desaliená-lo, libertá-lo e trazê-lo de volta a sua essência, a sua natureza e a sua verdade, pode torná-lo novamente apto para exercer a razão.
Eu diria, com a modernidade se atinge finalmente a antropologização, a psicologização, a urbanização da loucura.
Duas observações para terminar. Foucault me parece ter tido uma grande ousadia ao utilizar um método arqueológico, método que ele criou, criou inclusive a partir fundamentalmente de seus mestres epistemólogos. Que ousadia foi essa? A ousadia de negar a existência de uma verdade psicológica da loucura, como pensa ainda a modernidade. Mostrando que a história da loucura não é, como dizem os epistemólogos com relação a outras ciências, no caso do loucura, no caso da psiquiatria ou da psicologização da loucura, não é o itinerário progressivo da inteligência para a verdade. É, ao contrário, a história de uma grande mentira e, invés de descoberta, encobrimento. Mas me parece que ousadia maior foi pensar, prolongando a grande suspeita Nietzscheana com relação à razão, foi pensar que a loucura tem uma verdade essencial, fundamental, que foi progressivamente integrada a ordem da razão (é esse controle progressivo) mas que, não tendo sido inteiramente destruída, essa loucura essencial vela silenciosa quando não se manifesta na fulguração de obras poéticas, filosóficas (não científicas) de certos artistas, de certos filósofos como Raymond Roussel, Nerval, Artaud, Nietzsche, todos que um dia foram considerados como loucos. Obras que para Foucault têm a grande importância de terem sido capazes de resistir e com sua força desmesurada conseguiram vencer essas barreiras, esse cerco que a razão fez com relação à loucura silenciando-a . Conseguiu resistir com sua força ao gigantesco aprisionamento moral que constitui o monopólio da razão sobre a loucura.
Retomando o seu primeiro livro, essa experiência trágica do primeiro livro de Nietzsche, retomando essa idéia de uma tragicidade fundamental da loucura como uma forma de calar a psicologia positivista e dar uma positividade a uma possível relação não psicologizada porque não moralizável da razão com a loucura; me parece que Foucault iniciava uma investigação que não era nem fiel a si mesmo, mas uma investigação que, de modos diferentes em cada um de seus livros, teve sempre um objetivo principal, fazer o homem despertar, quem sabe, transfigurado de seu sonho antropológico que é esse sonho do sono da modernidade.