Em um mês a polícia paulistana matou duas crianças que estariam praticando crimes (isso não ficou ainda muito claro na morte mais recente). Em termos práticos, eu até poderia entender a ação da polícia se os meninos de fato atiraram contra os policiais. O problema não é tanto esse e sim a forma como muitos louvam essas ações e defendem os policiais sem que nada ainda tenha ficado claro nos laudos periciais que estão sendo feitos.
Enfim, a maior tragédia parece ser que gradualmente vamos banalizando o fato de crianças poderem estar usando armas e praticando crimes graves ou, mesmo que não estejam, suas mortes sejam vistas como perdas colaterais (no jargão militar “mortes acidentais ou desnecessárias”) “justificáveis” no plano de uma guerra maior.
Enquanto em muitos países a polícia recebe treinamento exaustivo para o uso da força, esgotada todas as possibilidades, sempre tentando minimizar as possibilidades de maior letalidade, parece que aqui atira-se com base no velho estereótipo do “preto”, “miserável” e “morador de favela” para depois avaliar se o erro fatal foi ou não cometido.
Tropas mal remuneradas, treinadas e expostas a falta de insumos básicos de proteção (coletes a prova de bala velhos e municiamento precário) oferecem mais ingredientes ao banquete de mortes desnecessárias que inclusive atinge a própria polícia, seja aquela produzida nos confrontos, seja aquela a paisana produzida no subemprego, seja pela altíssima incidência de suicídios determinados em grande parte pelas péssimas condições de trabalho. Se existem policiais que se comportam como “bestas feras”, é óbvio afirmar que essa violência não brota do chão.
Na plateia parte da elite aplaude de pé ações “informais” de extermínio e governos eximem-se de investir de fato em ações mais preventivas de segurança o que, entre algumas medidas, implica na valorização de quem está exercendo seu papel no aparato repressivo. Não se faz uma boa polícia apenas recrutando um homem, dando-lhe armamentos e uniforme militar. Ao alimentarmos o mito do herói disposto a morrer por nós, podemos inadvertidamente alimentar a realidade de um guerreiro que mal consegue discriminar seu objeto de intervenção muito menos a força que deve empregar.
Com o tempo irá parecer absolutamente normal abrir os jornais pela manhã e consultar o horóscopo ou saber o resultado do futebol com a mesma naturalidade que assimilamos a morte de mais uma criança pelo aparato policial, afinal, horoscopo e morte violenta de crianças vemos todos os dias.
Nas rádios e TVs, estaremos quase todos prontos para ouvir os discursos indignados do âncora – futuro deputado vampiro populista que se alimenta de sangue infantil – elogiando o trabalho da polícia em sua ação preventiva pois a criança cresceria e se tornaria um marginal muito pior. E nós, expectadores amedrontados, iremos nos submeter cada vez mais a uma sociedade pós apocalíptica, separada em feudos, agora apelidados de “condomínios”. Seja bem vindo à barbárie de uma sociedade que se diz cristã.
Por deboraligieri
Erasmo querido.
O que no seu texto você chama de “estereótipo” tem um nome, e é tipificado como crime na lei penal brasileira: racismo!
E se todos esses crimes (não os supostamente cometidos pelas crianças contra o patrimônio, mas os quase certamente cometidos pelos policiais contra a vida humana) já são ruins, pior ainda é a proposta de lei em tramitação na Assembleia Legislativa de São Paulo que propõe que o cargo de Ouvidor da Polícia seja ocupado por pessoa escolhida pelo Governador, e não mais a partir de lista tríplice indicada pela sociedade civil.
Deixo aqui o link de duas reportagens da Rede TVT sobre o assunto, ratificando as palavras do ativista Douglas Belchior de que o “Estado não tem permissão para matar”!
Beijos,
Débora