O olhar que o Outro nos lança é sempre a iminência de uma inesperada chegada. A fotografia é, enquanto arte, o retrato em si desse mistério. O Outro está lá, distante, e ainda assim tão próximo que só pode mesmo ‘aparecer’ quando não é previsto.
Ética é o nome que damos a essa estranha recepção. Pois absorver o olhar do Outro é já o dever de retribuí-lo. O desafio de tal gesto vem a ser então o de uma subversão do próprio, em que o eu abandona as suas margens para contornar-se em novo e desconhecido vir a ser. Só aí, afinal, onde também nos encontramos ‘suspeitos’, é possível hospedarmos quem está alhures.
A imagem que vemos acima é a do escritor Lima Barreto (1881-1922). Seu registro data do final de 1919, ocasião de sua última internação no antigo Hospício Pedro II. Em Diário do Hospício, obra em que relata essa passagem, escreve ele:
Agora, que creio ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar outra vez, penetrei no pavilhão calmo, tranquilo, sem nenhum sintoma da loucura, embora toda a noite tivesse andado pelos subúrbios sem dinheiro, a fim de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possam imaginar.
O fio translúcido desse trecho traduz toda problemática do acolhimento. Voltamos a falar então do verdadeiro rosto do Outro, do enigma do seu olhar, que é também a espantosa imagem de uma voz que grita sem garganta. Não por acaso, o autor revela, por escrito, o desejo de queixar-se das ‘coisas mais fantásticas’ (o que se refere à fantasia), as quais logo descobrimos terem o mesmo parentesco semântico de fantasma. Ora, a origem destas palavras é o grego phos, cujo significado é ‘luz’, ou seja, aquilo que permite justamente o ‘aparecimento’ – e que por fim dá sentido ao próprio núcleo da operação ‘fotográfica’ (photographia).
Estampado no olhar de Lima Barreto está, portanto, o aceno irônico de um fantasma. O que assombra não é tanto a obrigação de o ‘ouvirmos’ agora (coisa impossível no tempo), mas o testemunho que ele oferece dessa fantasiosa fisionomia do Outro. Só assim este surge, figura-se, com-parece. E só assim pode nos ver, por sua vez, a dizer finalmente ‘bem-vindo’.
Cabe saber se os papéis de autoridade e de prestígio que assumimos não têm impedido (especialmente a nós, os filhos da sorte) de reaprendermos a como partir de nós mesmos. Pois ‘aonde isso vai dar’ já é assunto a se resolver no caminho, a um passo da alteridade. Conquanto a diferença assuste, a hospitalidade oferece em si mesma um roteiro para os passeios mais noturnos.
Porque loucura maior é permanecermos aí, presos para sempre do outro lado do Outro.
Por miguel angelo maia
Belíssimo texto Pablo, como de costume…
Que fecunda construção e interligação de conceitos/sentires que dão o sentido mesmo do acolher e formam uma belíssima tecedura:
Olhar – outro – inesperada chegada- aparecer – ética – recepção- desafio – subversão do próprio – devir – hospedagem – fio – acolhimento – voz que grita sem garganta – fantasia – fantasma – luz – aparecimento – fotografia – figura-se – com-parece -bem-vindo – passeios noturnos – hospedar o outro.
O olhar de ontem/hoje/amanhã que o Lima Barreto lança e que parece o lançar e a nós todos em um enigma e que fosforece do ontem até o porvir como um enigma de Esfinge: Decifra-me ou te devoro.
Devoramo-nos e nos devoramos hoje nesta incipiência de hospedagem contemporânea em que tão conectados não parecemos capazes de conexão com aquilo que não é apenas fricção temporária, mas encontro. Explico, encontro como aquilo que nos desencontra e que nos faz enigmas de mundos, desvios construtores a Epicuro, clinamen.
A loucura com seus rasgos de lucidez que nossa loucura alienada normótica rotula rapidamente porque não fazê-lo seria arriscar-se na desmedida em que, afinal, todo corpo salta e assalta, fosforecendo de vida, pulsar imprevisto da potência, libido que autoridades e prestígios ousaram querer medir e remediar, como se pudessem.
Como não pensar no comecinho do Anti-Édipo: “Isto funciona em toda parte, às vezes sem parar, às vezes descontínuo. Isto respira, isto esquenta, isto come. Isto caga, isto fode. Que erro ter dito o isto”, quando Deleuze/Guattari vão falar das máquinas desejantes?
Como não pensar nessa fotografia como uma conexão de máquina que salta no atemporal e maquina este olhar real sem mais materialidade, mas que rasga de cima abaixo o fantasma de normalidade com que nos vestimos em sociedade para que, enfim, tenhamos um rosto?
O aceno irônico não seria algo lançado ao nosso fantasma? Que sabemos nós do fantasma do Lima? Afinal, ele penetra “no pavilhão, calmo, tranquilo, sem nenhum sintoma de loucora”. Que autoridade ou prestígio poderá, sem disfarce, desautorizar o seu próprio diagnóstico, o do Lima, quando, enfim, de louco, ele se torna seu próprio médico e se diagnostica normal, não baseado em alguma evidência, mas em uma intensa vivência de quem, abandonando os rótulos, parece ter a lucidez, phos, de quem mergulhou na vida e se desfez de qualquer fantasia, de qualquer fantasma?
Uma foto, assim me parece, que é a de uma máquina desejante que prescruta, não num lançamento a nós, mas que nos lança porque nos faz conectar uma dimensão em que tudo está perdido porque há excesso de encontrado, de encontro, de quem, sem ser hospede, virou hospedeiro, hospedagem a quem se arriscar a pernoitar em passeios noturnos…
O que são as máquinas desejantes? Ouso responder, corpos, simplesmente corpos em sua dimensão de corpos vivos…
Corpos que só saberia explicar com poesia e, portanto, ouso oferecer uma de minha suposta autoria, se eu eu tivesse “Porque loucura maior é permanecermos aí, presos para sempre do outro lado do Outro” e, principalmente, do outro lado do Outro que todos somos para nós mesmos.
Não seria esta hospedagem o antídoto para todos os fundamentalismos, racismos, xenofobismos, misoginias, homofobias, ec, etc, etc da qual este mundo desconexo e ao mesmo tempo hiperconexo padece?
CORPO DE CORPOS
03/04/2005
Apenas passagem,
O corpo respira e se expele…
Nem dentro, nem fora,
Apenas um agora
Em intensa ternura, a pele.
Tão corpo sem ser,
Tão ato se sendo,
Num sempre se dando,
Aquilo que doa
Já vai recebendo.
Um corpo de afeto,
De vida vivendo,
Pulsar de um feto
No escuro crescendo.
Apenas carinho,
Tão simples vestido,
Complexo caminho,
São corpos sentindo.
Um corpo não vê,
Um corpo não pensa,
Sentir é saber,
Viver recompensa.
Se a sorte o cansa,
Se a morte o visita,
Se lembra da dança,
A si regurgita.
Um corpo é só corpo,
Usina de afagos,
Um corpo é potência,
É água, não lagos.
Provocações… Miguel Maia