NÃO SEI POR QUE VOCÊ SE FOI….

14 votos

Há 26 anos trabalho como assistente social, no Hospital Dr. João Machado, em Natal/RN, onde conheci Maria de Fátima Cabral. 
 

Tínhamos em comum o mesmo nome, as lembranças recorrentes de nossos pais já falecidos, o gosto por café e o desejo de que o hospital psiquiátrico deixasse de ser lugar de moradia para os “desprovidos da razão”. 
 

Ela era negra, pobre e personificava ”o mito da periculosidade do louco”, fato que a fez morar por aproximadamente trinta anos num hospital psiquiátrico. 
 

Teve uma vida de privações e violências, mas nunca perdeu a esperança de voltar à sua cidade de origem e de ter um lar. O primeiro desejo foi atendido, através de algumas visitas a João Câmara/RN, sempre acompanhada por alguns técnicos da equipe que a assistiram em diferentes momentos de sua vida. 
 

Tive a grata satisfação de acompanha-la em uma dessas viagens. 
 

Registro o empenho da Sra. Maria Vera Lucia, extécnica de enfermagem do referido hospital, mãe de coração de Fátima Cabral e por isso designada sua representante legal, por ela ter perdido no processo de institucionalização a autonomia para gerir seus recursos financeiros, advindos do Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica de Assistência Social. Destaco ainda a participação de Vilca Araújo (Assistente social), Gorete Medeiros (Terapeuta Ocupacional) e Thiago Melo (médico psiquiatra) , na concretização desse sonho. 
 

A luta por um lar para Fátima Cabral e demais usuários que ainda estavam morando no hospital teve como marco o “Projeto Desinste” que objetiva o resgate de autonomia, independência e reinserção social para as pessoas com transtornos mentais. 
 

Nessa perspectiva, conseguimos que alguns retornassem ao convívio familiar e social e aqueles que não localizamos a referência familiar ou possuem vínculos familiares deficitários seriam contemplados com os Serviços Residenciais Terapêuticos. 
 

Enquanto aguardava a implantação da Residência Terapêutica, e perguntando diariamente “quando vou para casa?”, ela ficou na Moradia Assistida por quase 7 anos. Esse espaço era destinado aos “moradores históricos” do hospital e tinha como meta contribuir com a desinstitucionalização da loucura. 
 

Na Moradia Assistida ela fez muitos amigos, como costuma nos tratar e conquistou grandes colaboradores no resgate da cidadania dos ditos loucos. 
 

O apoio de Geneci de Andrade, Assistente social e exdiretora geral do hospital, e Fátima Lima, médica psiquiatra e sanitarista e ainda ex diretora técnica da instituição à época da implantação desse espaço, foram fundamentais. 
 

A parceria com a Secretaria Municipal de Natal, com o Ministério Público do Rio Grande do Norte e de grandes defensores da Reforma Psiquiatra em nosso Estado foi essencial nessa caminhada. Destaco o apoio de Ana Karenina Arraes, Silvana Barros, Magda Dimenstein, Marluce Ribeiro dos estagiários de Serviço Social, Psicologia e Terapia Ocupacional nos diferentes períodos de sua história, e de tantos outros que abraçaram a nossa causa. 
 

No entanto, foi na troca de afeto estabelecida cotidianamente entre moradores e cuidadores que alicerçamos nossa luta. Nesse contexto, não poderia deixar de citar o apoio incondicional de Leidiane Queiróz, Gorete Albuquerque, Thiago Melo, Vilca Araújo, Viviane Cavalcante, Lucia Costa, Francisco Pereira, Adriana Isaura, Marildo Farias, Conceição Barros e tantos outros 

A transição para o novo lar foi lenta, apesar do nosso empenho. 
 

Em 19/05/2016, na semana em que comemorávamos a Luta antimanicomial, realizamos o sonho coletivo e Fátima e seus companheiros foram morar na Residência Terapêutica do Distrito Sul. 
 

No dia seguinte ocorreu a inauguração oficial da casa, na presença de seus proprietários, das autoridades, dos cuidadores e dos amigos da saúde mental. 
 

Na Residência Terapêutica ela fez novos e grande amigos e recebeu o carinho especial de Raissa Ribeiro, uma criança de 11 anos, filha da coordenadora, Marluce Ribeiro e um ser humano encantador que nos ensina em ato, com a pureza da infância, lições de respeito as diferenças que quero guardar até o fim de meus dias.
 

Quando tudo parecia flores… Dois meses após viver na tranquilidade de um lar, Fátima Cabral nos deixou, e acredito que desta vez para vivenciar a verdadeira paz ao lado do pai celestial. 
 

Eu estava de plantão no hospital quando recebi uma ligação do “cuidador amigo e amigo cuidador”, Francisco Pereira, me informando sobre o ocorrido. 
 

notícia me pegou de surpresa e foi impossível conter a emoção, embora estivesse em um atendimento. Desse momento triste guardo a compreensão e a acolhida da pessoa que eu estava atendendo e principalmente, a lição de acordo com a qual o cuidado em saúde mental é uma troca. 
 

Após me refazer um pouco liguei para minha amiga, cria mental e companheira de luta, Leidiane Queiróz para dar a notícia. 

A reação de Leide muito me emocionou… Na suavidade de sua voz ela dizia: “Não Fafá, vou desligar o telefone e você me liga novamente dizendo que não é verdade”. Tudo que consegui fazer para aliviar sua dor foi chorar com ela. Pouco tempo depois, falei com Lucia Costa, a querida mamãe Lucinha como era conhecida na Moradia Assistida, pelo amor incondicional que sempre dispensou aos que dos seus cuidados precisaram. 
 

Em seguida peguei Leidiane em sua casa e fomos juntas para a Residência Terapêutica. 
 

O clima lá era de muita tristeza… Conversamos com os demais moradores da casa, na tentativa de nos apoiarmos mutuamente para enfrentar a dor e a saudade que já ´habitava nossos corações. 
 

Passados os tramites burocráticos para liberação do corpo, Fátima foi velada, na presença dos cuidadores e amigos, no Centro de Velório São Francisco, no bairro do Alecrim. 
 

O sepultamento foi no Cemitério Parque Nova Descoberta e marcado pela generosidade de sua cuidadora, Maria Vera Lucia, que fez questão de sepultá-la no túmulo de sua família e pela pureza de Francisco Edvan que se despediu da amiga dizendo “Ela morreu porque chamava muito o pai e a mãe. Gorete Alguquerque indagou: “Onde está o pai dela?“ Ele respondeu: “No céu!” Gorete prosseguiuE a mãe? Ele prontamente apontou para Dona Vera, mãe de coração de Fátima, num gesto de gratidão e reconhecimento à dedicação dela 
 

Por ironia do destino ela faleceu no dia que celebramos o dia da amizade (20/07) e nos despedimos dela cantando a música de Tim Maia “GOSTAVA TANTO DE VOCÊDesceu à sepultura com uma chuva de corações que haviam sido reservados para sua festa de 56 anos que ocorreria em 22/07. Com certeza teve festa no céu! 
 

Quanto a mim, quero lembrar de Fátima Cabral me chamando de “Fatima Solto”, de soltura, liberdade, pois só ela com sua sabedoria conseguiu numa simples troca do meu sobrenome de Couto para Solto traduzir meu desejo de contribuir com a construção de uma sociedade livre de manicômios físicos e mentais. 

Minha guerreira, símbolo da resistência humana, a melhor maneira de mantê-la viva em nossa memória e em nosso coração é não desistindo da LUTA.