FALTA DE ÉTICA OU EXCESSO DE PERMISSIVIDADE?

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Em imanência: uma vida, Deleuze reflete: “Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, levando em conta o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito desprezado por todos cai agonizante e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor pelo menor sinal de vida do moribundo”. 
Ou seja, há um momento em que diante do outro agonizante, todos os traços particulares somem e nos encontramos com algo que é o menor sinal de vida, a vida ela mesma, que nos faria ou deveria fazer encarar esta vida como a vida de qualquer um, como nossa própria centelha de vida. É esta centelha de vida, singular, única, o que nos faria, seja o maior canalha que for, ter o ímpeto de salvar a vida, qualquer vida.
Fico aqui pensando o que poderia tirar como analisador de turistas na Itália vendo um imigrante africano se afogando e, aos gritos de deixem-no morrer, assistir até o fim a agonia de uma vida sem nada fazer, como se houvesse uma espécie de regozijo na morte alheia. Como se a menor partícula de sinal de vida já não importasse naquele homem. Ou em todos os homens? Qualquer homem?
Fico pensando, como analisador, na agonia de Dona Marisa, que ninguém prova que foi alguma canalha, ao contrário, enquanto primeira dama foi discreta e não utilizou sua função para ostentação, mas para trabalho social, dar ensejo a uma espécie de barbaridade pública, de certo público, fazendo com que até mesmo pessoas profissionalmente obrigadas a uma determinada ética, caírem numa espécie de canibalismo da vida por um ódio sem motivo real, a não ser o que eles pensam ser prova de suas próprias falhas conclusões seletivas e direcionadas.
Que espécie de valor é este? Que espécie de nova moralidade e ética é esta que se quer pura na mais completa sujeira do que se esperaria de qualquer ser vivo? Sei que é fácil dizer que é falta de valores e de ética. Mas, confesso, a coisa é bem mais horripilante e séria. Há aí sim um valor e uma ética esdrúxulos, uma espécie de vale tudo, quando se trata de destruir o objeto do meu ódio, ainda quando nada confirma que minhas suspeitas são, sequer, razoáveis.
Dirão que é fabricação da mídia, ok se for. Mas o que torna humanos tão vazios a ponto de se deixarem arrastar numa onda de ódio cego e assassino? Os turistas na Itália mataram ou não aquele imigrante africano, já que podiam facilmente salvá-lo? A farsa brasileira em conjunto com um certo povo mesquinho foi ou não responsável pelo final trágico de Dona Marisa?
Enfim, que valor e que ética é esta que nos faz pensar que o imigrante africano afogado e Dona Marisa estão melhor do que todos nós, obrigados a conviver, suportar, ver e testemunhar o total desrespeito com uma vida, qualquer vida, porque algumas vidas vazias se consideram melhores do que qualquer outra, na contramão, sem opção, de seus interesses mesquinhos?
Triste espetáculo de um mundo degradado, triste começo de século, triste futuro que construímos para as crianças, homens e mulheres do porvir.
Será que já não basta? O que mais esperaremos?