A vida volta a sorrir…

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Chica foi mais uma das muitas moradoras dos hospitais psiquiátricos brasileiros. Sua genética e história de vida lhes foram desfavoráveis e não deram a oportunidade de viver como ela merecia.  Desde 08 de maio de 1984 morava no Hospital Dr. João Machado e por lá permaneceu até maio de 2016. Foram 32 anos, muito mais do que tenho de vida, vividos entres as paredes institucionais. Desses, aproximadamente 25 anos foram passados em enfermarias rotativas caracterizadas pela impossibilidade de ter um lugar para chamar de seu. Quem já conheceu esse tipo de enfermaria sabe que o mais comum é o paciente ter apenas uma cama, nenhum pertence pessoal, pouca privacidade e identidade.

A doença e principalmente a institucionalização pesaram na vida dela. Ela desenvolveu cardiopatias, iatrogênias, solidão e exclusão. Em 2009 sua vida começou a mudar quando a experiência com os residentes do Hospital foi ampliada e passou a integrar o serviço chamado de Moradia Assistida, espécie de lar temporário que objetivou facilitar a transição de pacientes de longas internações para o lugar determinado em seu projeto terapêutico singular. No caso da nossa Chica, lhe restou reconstruir sua vida em uma residência terapêutica. Foram anos pactuando e lutando pela efetivação desse projeto para que este ano viabilizássemos o tão sonhado lar.

Lamentavelmente ela já estava com muitas limitações funcionais. Tive a oportunidade de estreitar atendimentos e vínculos enquanto terapeuta ocupacional dessa enfermaria na perspectiva de melhorar sua qualidade de vida.

Felizmente, o grande dia chegou. Chica estava toda feliz com a mudança! Preocupava-se com seus itens pessoais já adquiridos nos últimos anos (bolsas, lenços, chapéus, vestidos). Logo se sentiu a dona da nova casa e apesar de estar em uma cadeira de rodas. Não economizava ordens e pedidos, como lhe era peculiar. Virou a alegria e a paixão de todos os novos cuidadores e moradores!

Eu de longe, mas de muito perto, já sentia que o dever estava parcialmente cumprido. Agora me restava deixar de lado a função de terapeuta e assumir de vez a função de admiradora dessa forte mulher.

Pouco depois ela adoeceu e precisou ser hospitalizada. Talvez seu coração não tenha suportado tamanha emoção. Talvez nele não coubesse tanta alegria e tanto amor. O fato é que Chica se foi no dia 07 de novembro de 2016 e deixou um grande vazio em todos nós.

Em uma das vezes que lhe visitei no Hospital deixei tocar essa música (fundo do vídeo) e somente assim ela dormiu e me deixou ir. Escolhi essa música para homenageá-la e deixar registrada sua alegria. Escolhi falar da vida e não da morte. Escolhi falar sobre Chica porque ela é símbolo de resistência, de resiliência. Sua breve estadia no novo lar fortalece em nós o desejo de lutar pelos direitos sociais das pessoas com doenças mentais, ainda que a vida volte a sorrir por pouco tempo.

Saudades…

 

Autora: Leidiane Queiroz – terapeuta ocupacional/ CREFITO 1  11174-TO

Co-autora: Fátima Couto – assistente social/ CRESS RN 633

Obs.: publicação autorizada.

 

 

Ver homenagem em vídeo no link: https://youtu.be/HO_hn847Dfk