Política proibicionista x Redução de danos – Reflexão de uma acadêmica de Medicina durante o estágio no Centro de Atenção ao Alcoolismo e outras Dependências (CEAAD)
Os alunos de Medicina da UFAL entram em contato com a Psiquiatria em diversos momentos do curso e conhecem um pouco da realidade do Hospital Portugal Ramalho e de outros locais como os CAPS e o CEAAD. Durante a minha formação sempre defendi a proibição de drogas ilícitas, mas nunca questionei o uso do álcool, substância liberada. Quando conheci o CEAAD pela primeira vez, vi que muitas pessoas estavam ali pela dependência do álcool. Dessa forma, conclui que as pessoas que fossem dependentes do álcool, ou mesmo de outras drogas, deveriam simplesmente se internar para tratar e se aliarem a uma política totalmente proibicionista, que ao meu ver naquele momento, os afastaria do vício.
Vivi um tempo enxergando a dependência com olhos leigos e preconceituosos, acreditando que somente a exclusão do vício faria deles pessoas funcionais novamente. Me questionava várias vezes sobre o fracasso dos usuários que não conseguiam largar ou tinham várias recaídas, seria falta de força de vontade de mudar?
Até este ano, mesmo já tendo visitado o CAPS Casa Verde, descobri um termo que até então não conhecia, eles trabalhavam com uma política de redução de danos. Entendi brevemente como funcionava e discordei dessa abordagem, por achar que desta forma as pessoas nunca se recuperariam. Me informei e vi que no CEAAD eles continuavam a trabalhar com a política proibicionista, que teve suas bases fundadas no período ditatorial. Vivenciar o CEAAD me fez rever meus conceitos e adentrar mais na reflexão sobre a política de redução de danos.
A política de redução de danos começou a ser empregada no nosso país em 1989, quando perceberam a alta taxa de transmissão do HIV entre usuários de drogas injetáveis e atualmente vem ganhando outros cenários aquém da DST. Entender a política de redução de danos foi crucial para mim, porque ela está muito além de apenas “não proibir o uso”. Ela carrega um contexto social, econômico e político.
Na conjuntura política e econômica vemos os altos índices de inflação, o crescimento demográfico acelerado, a precariedade da educação e um Estado incapaz de oferecer condições dignas para todos. Tudo isso corroborou para o surgimento do mercado ilícito das drogas, do crescimento de favelas e do aumento da violência urbana. Tanto em relação a países de primeiro e terceiro mundo, como nas próprias classes sociais do Brasil, a lei do mais forte (ou seria, mais rico?) prevalece. Dessa forma, o tráfico e o consumo começam a serem associados aos países de terceiro mundo e as periferias. Porém, devemos refletir que esse é um mercado milionário, associado ao bélico que entra no combate as drogas e estes, estão relacionados a classe alta e aos países de primeiro mundo. Dessa forma, tudo isso converge para o contexto social, que deixa as pessoas de baixa renda sem assistência e se elas se envolvem nas drogas são excluídas e estereotipadas, sendo abandonadas, consideradas criminosas ou mesmo doentes para hospitais psiquiátricos.
Demorei a compreender que nem todo usuário é necessariamente dependente da droga, os dados mostram que de 5 usuários de crack, apenas um tem dependência na substância. A maioria das pessoas, dentre as quais eu já fiz parte, tendem a achar que todas as pessoas que utilizam drogas, são más e ateus, roubam para comprar ou pagar dívidas e são pessoas não funcionais que precisam da reclusão nos manicômios. Nesse aspecto, envolvemos conceitos do direito, da psiquiatria e da religião. O que todos se esquecem é que nem todo mundo que utiliza droga precisa de tratamento ou quer tratamento ou traz riscos para a sociedade. Mas, caso queiram, elas têm o direito a saúde, lembrando que o conceito de saúde se estende além de mera ausência de doença, como todos os outros indivíduos.
Ter os seus direitos respeitados e garantidos são princípios da política de redução de danos, de forma que o usuário não seja visto sempre como doente ou criminoso. Logo, através das associações, os usuários de drogas são incluídos numa gestão comum organizada em rede. Essas redes garantem direitos, como alimentação, moradia e trabalho, colaborando para a ressocialização e cidadania.
O que é questionado e que enfrenta grandes impasses diante aos olhos da sociedade é a metodologia de baixa exigência que a redução de danos emprega. O objetivo não é a repressão, porque isso aumenta a resistência e a fissura e diminui a vontade de mudar. Logo, o foco não é a droga. O objetivo principal é desenvolver vínculos que gerem vontade de mudança. Porém, há exigências mínimas que são estabelecidas contratualmente com os usuários que aderem ao programa.
Um grande exemplo dessa gestão organizada em rede é o programa “de Braços Abertos” de São Paulo. Esse grupo é coordenado pela Secretaria da Saúde e composto por mais outras 13 Secretarias Municipal, 2 Estaduais e a sociedade civil, e que tem por objetivo planejar, implementar, monitorar e divulgar ações relacionadas ao Plano Inter setorial de Políticas sobre Crack, Álcool e outras Drogas. Ele tem sido um grande exemplo da eficácia da redução de danos e do seu poder transformador, não só dos indivíduos, mas também do espaço urbano, em que os usuários através do seu trabalho ajudaram a modificar.
Em momentos anteriores apoiei a política proibicionista e via ela como a única solução para o fim do vício. Ao conhecer a redução de danos e o CEAAD estou podendo refletir e amadurecer minhas opiniões. No CEAAD, vários usuários relatam que não tem motivação ou lazer fora do álcool porque a família se afastou, eles não têm emprego, não tem contato com atividades físicas, são mal vistos pela igreja que seguem e são abandonadas e estereotipados. Isso faz refletir no impacto positivo que a redução de danos poderia causar, ao propiciar a criação de vínculos, que fariam os usuários não terem a substância como o centro da sua vida e irem reduzindo o consumo e até mesmo cessando, como já demonstram algumas pesquisas. A politica de redução de danos está em constante transformação e vem sendo implantada no Brasil, mesmo ainda com algumas resistências. Fica em mente, se no futuro o CEAAD irá aderir o programa de redução de danos e modificar sua maneira de abordar os usuários.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Mais uma postagem de grande valor por mostrar teu processo de encontro vivo com a realidade que você quer problematizar.
Muitos vão se contagiar a partir deste tipo de engajamento que você tão bem descreve, Andressa.
Abraço!