(I)mobilidade e apagão do público na cidade de São Paulo

15 votos

 

Para "l@s tr@ansbordantes",
enchente de vida nas redes.
 

 

Rio Tiete, no início do século XX
(clique na imagem para ampliar) 

Ê, São Paulo…

  Dizem que São Paulo “não pode parar”…
  Mas tá quase parando. Já quase parou.

  Dizem que São Paulo é a “terra da garoa”…
  Mas, não sei se todos sabem, esse fenômeno meteorológico sui generis, que se expressava nas altitudes do planalto paulista, de fato, não existe mais. O desmatamento, a poluição, a impermeabilização do solo urbano e sei lá mais o quê puseram fim à garoa. Virou mito, lembrança, velha canção.

  Por falar em questões meteorológicas, o friozinho que chegou para os gaúchos, no início da semana, atingiu ontem São Paulo, trazendo chuva. Uma frente fria que chega hoje, em Porto Alegre, é virtualmente a tempestade que se abaterá sobre a capital paulista, dois ou três dias depois.
   Os mapas meteorológicos são rigorosamente mapas de forças: de “virtualidades em curso de atualização” (Deleuze sobre Nietzsche). A massa de ar polar que se desloca do sul abre um vetor de atualização que passa por Porto Alegre e se estende numa linha de duração até São Paulo, numa sucessão de acontecimentos mais ou menos previsíveis.
   Tenho amigos em Porto Alegre. São eles que me contam primeiro do frio, são eles que traçam a minha “carta meteorológica”, que vai se delineando nas conversas, nos posts, na rede .

  Às vezes, chove tão absurdamente em São Paulo que eu, morando na periferia, simplesmente não consigo penetrar na cidade. Tenho que cancelar compromissos. Ficar em casa acaba sendo o único jeito possível de "sair de casa". Trocando rua por rede, mobilidade por ubiquidade. Lançando-me nas incertas correntezas do grande rio de signos…
   Há também um razoável congestionamento no espaço eletromagnético. Pois há tal intensificação do tráfego "vocal" (sob todos os comprimentos de ondas) através do espaço aéreo, que mais parece um fenômeno vicariante à imobilidade dos corpos.
   A voz é uma das poucas partes de nosso corpo que ainda consegue se mover com certa liberdade nesta cidade.
 


Rio Tietê, no início do século XXI
(clique na imagem para ampliar)

Primeiras visões dos rios

  O rio Tietê sempre teve um papel fundamental na mobilidade dos paulistas e paulistanos, desde os tempos do povoamento primitivo das terras do Planalto de Piratininga.
  Os jesuítas, que fundaram o célebre colégio na colina existente entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí, usavam basicamente o transporte fluvial para se comunicar com os aldeamentos. Assim, por exemplo, a ligação com os aldeamentos – hoje bairros – de Pinheiros e Santo Amaro era feita por barcos, saindo dos portos do Tamanduateí, entrando no Tietê e, deste, alcançando o Jeribatiba, nome original do rio Pinheiros.
   Até hoje, estes dois rios – o Tietê e o Jeribatiba (Pinheiros) – continuam a fornecer as duas linhas mestras do sistema de transporte da região. Só que não é mais fluvial. É rodoviário.
   Daí sucede que, o que outrora foi vantagem, hoje se afigura como um grande desserviço! Que as margens desses rios tenham sido escolhidas para assentar as principais artérias de tráfego viário da metrópole (as avenidas marginais), é feito e fato que estão entre os que menos ajudam para os já tão complicados problemas de mobilidade urbana desta triste metrópole dos trópicos.

 

Visões da mobilidade, do comum e do público

  Não é totalmente inútil se colocar o problema do excesso de veículos na cidade de São Paulo à maneira dos economistas, ou seja, considerando simplesmente que: o transporte coletivo em São Paulo não é suficientemente bom para que alguém, que possa manter um carro individual, possa prescindir de usá-lo e achar que é uma melhor escolha deixá-lo na garagem.
  Pode-se dizer que este “comportamento” – o reconhecimento da insuficiência ou falência de uma dimensão coletiva, tornando imperativa uma saída individual – corresponde a uma espécie de "comportamento geral" dos cidadãos, observável em sua relação com várias outras "políticas do comum" ou “políticas públicas”, entre estas, a saúde. Desse estrito e limitado ponto de vista, pode-se dizer que também o SUS (como garantia de atenção à saúde) ainda não se mostrou suficientemente bom (não se mostrou suficientemente "garantido") para que alguém, que possa bancar um plano de saúde privado, escolha não fazê-lo.
   De fato, esse "comportamento geral" – que troca a "garantia de direitos coletivos" pelo salve-se-quem-puder da "luta por privilégios privados" – é o comportamento deste "robô sanguíneo" (como diria Estamira) que é o autômato econômico neoliberal.
  Eu diria que pode até ser o comportamento esperado do ponto de vista do ethos econômico vigente, mas é um péssimo negócio do ponto de vista de uma "política do comum"!
  Um péssimo negócio, quando se trata de um direito cuja garantia é a existência concreta de um espaço público. Como é o caso do direito à mobilidade.
   Um espaço público é, por definição, um espaço de mobilidade: um espaço de mobilidade que permita que os encontros sejam possíveis; um espaço que se atualiza como espaço público, nesses encontros.
   Nesse sentido, a mobilidade, a possibilidade de se mover, é um desses bens que mais perfeitamente ilustram o que seria a natureza do "comum", a natureza eminentemente imaterial da "coisa compartilhada", sua condição paradoxal: simultaneamente, a causa e o efeito, a condição de produção e o produto.
   A atual crise de mobilidade, a crescente dificuldade dos paulistanos se moverem pela cidade é, sem dúvida, indicativa de que há um considerável "déficit de público" neste "espaço público". Há um considerável “déficit de comum” se expressando de modo especialmente dramático neste que é, justamente, o mais emblemático de todos os espaços de encontro, de todos os espaços do comum: o espaço das ruas.

 

Visões da imobilidade ou o triunfo do privado e do "carro particular"

  Em São Paulo, o problema do tráfego se tornou extraordinariamente grave e extremamente sensível a injeções adicionais de "carga" no sistema, como as que se deram recentemente, em consequência da isenção de impostos (IPI) para a compra de carros novos. Esta, a não desprezível contribuição do governo federal ao agravamento do nosso problema de mobilidade urbana!
  Por seu lado, o governo estadual, que é da "oposição", já dá sua contribuição faz tempo! Vangloriam-se, dizendo que são os melhores “gerentes”, mas o problema, cuja solução estaria “tecnicamente” em suas mãos há quase duas décadas, só tem se agravado. Como até um economista, tosco mas honesto, seria capaz de concluir: vêm sendo sistematicamente incapazes de fazer com que os cidadãos que possam ter um carro não vejam interesse em usá-lo.
  O mais fascinante, contudo, é observar como a ação dos atuais "gerentes" do estado e do município de São Paulo, a despeito de serem da "oposição”, se encontra perfeitamente coordenada com a ação dos "tesoureiros" federais: antes mesmo destes últimos promoverem o fabuloso derrame adicional de veículos nas ruas da megalópole, aqueles já se adiantavam nas obras de alargamento das avenidas que margeiam os escatológicos grandes rios que a atravessam.
   Toda essa coincidência de propósitos e sinergia de ações, que põe de lado toda e qualquer divergência partidária, deve estar a apontar para alguma coisa verdadeiramente fundante e constitutiva do projeto biopolítico dominante

 

 
Trânsito em SP na manhã de 08/12/2009
(clique na imagem para ampliar)

 

Mais visões dos rios

  São Paulo despreza seus dois maravilhosos grandes rios Tietê e Jeribatiba (Pinheiros). É uma cidade "de costas" para eles, se é que me faço entender. Quero dizer que a vida, em São Paulo, não se passa mais ali, ela se passa na "cidade", dentro da carne cinza da cidade. Os rios são só duas fortes linhas, que traçam a abscissa e a coordenada entre as quais se esquadrinha a nossa cidade.
  Às suas margens, não se organizou uma forma de vida que mantivesse qualquer relação com a natureza viva do rio, não se pensou suas margens como lugar para os passeios na natureza, para o reencontro com o bucólico, o que se deu, em maior ou menor grau, em muitas outras grandes cidades do mundo, que cresceram, mas seus cidadãos não deixaram de amar seus rios e souberam preservar suas margens para os passeios, fizeram com que permanecessem espaços para o tempo livre, para o corpo se reencontrar com a beleza natural do mundo, para manter viva a lembrança do mundo em que verdadeiramente vivemos.
  Às margens dos rios que atravessam São Paulo, não se organizou um espaço para fazer o tempo parar e contemplar, mas, no extremo oposto, se organizou um espaço de trânsito rápido: lá construímos suas linhas principais de tráfego viário: leste-oeste (Marginal Tietê), norte-sul (Marginal Pinheiros). Suas espinhas dorsais, backbones, ligações centrais da megacidade.

  No imaginário nacional, “marginal” é sinônimo de tráfego rodoviário amazônico e engarrafamentos épicos. Quase ninguém mais se lembra que são as margens de um rio. Antigamente, quando as enchentes eram mais frequentes, o próprio rio vinha, ciclicamente, nos lembrar de sua natureza. Mas, nos últimos anos, até que temos conseguido impor um grau de submissão considerável às suas forças fluviais e tudo em nome do tráfego de veículos. Quando se pensa em “marginal”, não se pensa em rio, pensa-se em tráfego de veículos, grande volume de veículos, engarrafamentos; elas são muito mais “margens” da cidade do que dos rios.
  Uma última mirada fluvial persiste na visão das dragas "flutuando", ou melhor, pousadas sobre aquele fluido marrom. Isso porque mal atinamos para o fato de que elas estão ali para lutar contra seu constante assoriamento, fazendo com que ele continue a ser alguma coisa que ainda possa ser chamada de rio. É muito mais natural, hoje em dia, nos preocuparmos em alargar o leito das avenidas, do que o leito dos rios.
  Só restaram as fotos amareladas mostrando as regatas de barco a remo que se realizavam em suas águas. Não apenas não se praticam mais esportes aquáticos, como até mesmo já "virtualizamos" o rio enquanto palco do esporte, construindo uma raia de remo exatamente ao lado e paralela ao Rio Pinheiros: a raia da USP. Um duplo navegável, estendido ao lado deste rio quase morto.
 


Remando no Tietê em 1917
(clique na imagem para ampliar)

"... a carne cinza da cidade"
Obra de Renato Neves, 2007
(clique na imagem para ampliar)


Mais visões da (i)mobilidade ou o apagão do público na cidade de SP

  O problema da “mobilidade urbana” na cidade de São Paulo envolve dimensões (e decisões) que o colocam para muito além de um problema de “transporte coletivo” ou, numa versão mais risível, de “sistema viário”. Diz respeito a uma forma de vida.

  Um exemplo, só um exemplo: todo mundo sabe que o trânsito piora muito quando voltam as aulas. Mas o que, de fato, isso significa?
  Tenho um cunhado francês que vive em São Paulo e ele nos devolve, vez por outra, algumas de suas impressões espontaneamente “etnográficas” sobre a vida dos nativos. Papo típico numa roda de classe média paulistana: a escola dos filhos. Gastamos um tempo considerável discutindo qual seria a melhor escola para colocar nossos filhos. E um tempo ainda maior levando os filhos, diariamente, para a escola. Certamente, trata-se de escolher qual a melhor escola para colocar nossos filhos na região da cidade em que vivemos. Mas, mesmo tendo que se restringir a apenas um pedaço da cidade, essa escolha pode implicar (com frequência implica) em deslocamentos consideráveis, seja em "carro particular", seja em "transporte coletivo".
  Não dá outra: início das aulas, caos ainda maior no trânsito!
  Ao olhar dos descendentes de Asterix, essa discussão beira o surreal! Na França, ela simplesmente não existe. A escola dos filhos é simplesmente a escola pública mais próxima, a escola do bairro. O trânsito em Paris é também bastante ruim, mas não se agrava significativamente no período escolar. Para se entender o trânsito e o papel do carro naquela sociedade, talvez, seja especialmente útil análises como a de Richard Sennett a respeito do “declínio do homem público”. No caso paulistano (e de outras grandes cidades brasileiras), precisaremos entender como opera a supremacia absoluta do interesse privado entre nós, americanos do sul. Precisaremos entender esse apagão do público. Esse que parece ser um atávico desprezo pelo comum, pelo bem comum.

  Por isso, insisto que o problema da “mobilidade urbana” na cidade de São Paulo não é apenas um problema de melhoria dos meios de “transporte coletivo” ou de ampliação do “sistema viário”. É resultado de uma opção que refazemos, a cada dia, por uma dada forma de vida.

   A eficácia política e econômica desse problema decorre exatamente da ineficácia de qualquer das soluções que se apresentam. Sempre se poderá fazer o que ninguém ainda fez, sempre se poderá construir um novo viaduto ou um novo túnel, abrir novas avenidas ou novas linhas de metrô ou de trem. São Paulo não pode parar!

  Mas, enquanto nos ocupamos, sem parar, com soluções que consomem todos os nossos recursos mentais e quase todos os recur$os públicos que conseguimos reunir (a cidade de SP tem o segundo maior orçamento do país!), mais ficamos parados em nossa "cegueira situacional".
  O fervilhar do mercado de idéias para solucionar o caos urbano, com a mesmice de suas sacadas "geniais", que gerarão milhares de empregos e aquecerão a economia, são as buzinas ensurdecedoras de um engarrafamento encobrindo a voz da criança dizendo que o rei está nu.

  Todos os problemas de São Paulo parecem nos levar sempre a uma solução que só pode estar nas mãos de alguma iniciativa privada. Esta parece ser a coisa mais "comum" por aqui. A aporia paulistana. Dobro-me perante este enigma, enquanto a cidade nos devora.

*

  Como disse, a vida em São Paulo parece fluir mais nas redes do que nas ruas. A gente pensa em muitas coisas quando passa duas a três horas por dia parado no trânsito. Há, entretanto, uma estranha sensação de movimento em se transbordar alguns flashs dessas meditações urbanas neste caudaloso rio de signos, que corre para a rede-mar.

   Procurando uma ponte para um outro modo de vida…

Obra de Renato Neves, 2007
(clique na imagem para ampliar)