Em “Além do Bem de do Mal” Nietzsche faz uma crítica decisiva acerca de nossas ideias de bem e mal. Nos enganamos ao pensar que no início de uma ação existe um atuante, que seria livre para transcender sua imanência. Imaginamos (e depois idealizamos) seres potentes para escolher ser menos, ou mais do que são. Seres que podem ser “do bem” ou “do mal”. Deliramos que estes seres são as substâncias do “bem” ou do “mal”. Na realidade existem relações, de modo que, a existência não acontece como um empreendimento voluntário e transcendente. Ela é, desde sempre, o conjunto de relações efetuadas em um acontecer contínuo.
A luz fulgurante, o clarão do relâmpago e, por fim, o estrondo do trovão se tornaram, na emergente percepção humana, há dezenas de milênios, uma cadeia de eventos de causa e consequência. A luz é percebida como a força que dá causa, que determina o evento que acontece. A luminosidade -ancestralmente associada a segurança e proteção – é a guardiã da vida e da existência. A primeira obra de Deus, misteriosa e sutil, provoca o trovão, expressão da potência silenciosa da luz, fenômeno da divina vontade.
É assim que passamos a expressar em termos de valores, do bem ou do mal, todas as manifestações de força. Rapidamente indicamos que a força se expressa a partir de um desejo.
O mal derivaria de uma escolha. E o bem de uma suposta renúncia ao uso da força. A ave de rapina escolhe causar o mal, ataca a ovelha, e a destroça. A ovelha, boa, abre mão livremente de efetuar sua potência, e mesmo que boa em si mesma, sofre a predação. É daí que decorre a necessidade de um Deus de justiça para punir o mal e redimir o bondoso.
Hoje sabemos que o fenômeno das ondas sonoras e luminosas têm potências intrínsecas e diferentes. Entretanto, o fenômeno das descargas magnéticas na atmosfera são íntegros e todas as suas partes são necessárias. Não há liberdade de escolha na luz para que esta domine ou determine o trovão. Há uma integração determinada naquilo que nossas mentes interpretaram como expressão necessária de uma vontade oculta: a vontade bondosa e transcendente da luz divina.
Em primeiro lugar, não há um Deus que condene parte de sua criação, em nome da justiça implicada na escolha de não ser o que se é. Seja o que for que chamamos de bem ou de mal, bons e maus decorrem do movimento efetivo que realiza o que vamos nos tornando.
A liberdade, ao contrário do livre arbítrio vulgar, é uma possibilidade para um ser capaz de perceber a necessidade que envolve e integra o contínuo acontecimento que implica existir. Não há bem e mal naquilo que é tão somente o que é, o que, portanto, só pode ser a expressão plena de si mesmo.
Em nossa fé de que todas as nossas limitações e todas as contingências a que estamos expostos são expressões de uma infinita bondade e misericórdia divinas, encontramos um alívio, a anestesia para um ressentimento para com a existência.
Em sua obra Nietzsche vai alertar que o preço dessa ilusão transcendental, de fiar a vida no ideal e no além dela mesma, é a renúncia a tudo o que podemos de fato. Além de apartar a vida de sua plena potência.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Muito belo e necessário este post, Marco. Há quem pense hoje que se puder submeter-se a toda a enxurrada de informação sobre como manter ou conquistar a saúde, estará a salvo dos ‘perigos’ a que se expõem aqueles que não se preocupam tão obsessivamente com isso. Funciona como uma crença. Se controlo todas as variáveis em jogo para ter uma boa saúde, já a tenho. Bom seria se a realidade fosse tão reta como esses raciocínios.
É um exemplo do “fiar a vida no ideal” e da “renúncia a tudo o que podemos de fato”.