Uma verdade só prova sua força quando resiste a mais intensa fúria da crítica. O mesmo vale para um valor: Se precisamos ser condescendentes para com nossos valores éticos e morais; Se somos rasos e superficiais; Se abraçamos a lisonjeira ilusão do fascismo; então não podemos evitar o mergulho no abismo da insuficiência de sentido.
Nietzsche propôs criarmos novos valores. Ele percebeu que a convicção de que a ciência nos levaria a uma verdade tão transcendente, quanto fundamental era apenas mais uma ilusão. Os valores morais jamais obteriam uma garantia para além da antropogênese.
Os valores se depreciam e se dissolvem em contextos nos quais se tornam anacrônicos. Se não os criamos, ficamos amarrados a tradições que não dão conta de sustentar o sentido da existência. Essa talvez seja a nossa maior fragilidade. Sem um sentido intersubjetivo a existência humana perde significado e mergulha na psicose coletiva.
O afundamento na busca de uma verdade, através da iluminação, nos fez emergir para o real com a probabilidade numa mão e a incerteza intrínseca, na outra. Da lucidez desse estado de perplexidade, criamos um mundo onde a potência do ato está se distanciando dos humanos na mesma velocidade em que nossos valores se dissolvem na impossibilidade de atribuição de sentido.
O gesto de calcular os desenlaces da interação entre qualquer conjunto de variáveis está se deslocando da mente humana para os microcircuitos das redes neurais artificiais. Com isso a economia está se despedaçando numa espécie de cataclismo que está arruinando o sistema de valor monetário.
O capitalismo permitiu uma economia dos significados com base na distinção e no poder. Vidas humanas obtinham significado numa arena, num mercado de bens simbólicos orientados para o valor moeda. Desse modo o mistério da existência podia ser emulado numa economia de pressupostos ocultos, porém sólidos como as rochas.
Quando Agamben escreve que Deus não morreu, mas que se transformou em dinheiro, ele está afirmando que a base de todo o sentido que produzimos é de fato baseada na escassez e na necessidade de acesso privilegiado a existência. Então atribuímos significado a nossas vidas na forma de apropriação de tudo que é bom, belo e verdadeiro. Com a condição primordial de tratar qualquer coisa que tenha valor como escassa.
Assim vamos adicionando signos de exclusividade, ostentando bens e propriedades que podem ser rapidamente convertidas em valor monetário. Pode ser uma casa, roupas, smartphones ou pessoas, ou órgãos de uma pessoa… Mesmo o comportamento e as vivências de alguém tem um preço no mercado do valor existencial.
Como não podemos admitir a miséria e a fraude de se reduzir toda a diversidade de bens simbólicos que nossa espécie produziu ao longo de 40 mil gerações, nos violentamos assumindo valores cosméticos, cobrimos de merda todos os aspectos da vida que não podem ser reduzidos ao dinheiro.
Agora em que todos esses adereços existenciais podem ser projetados e fabricados por máquinas ou por zumbis humanos super explorados em algum país nas margens do oceano Índico; nesse momento em que a inteligência artificial está começando a nos superar nos mais amplos campos da cognição; quando médicos e advogados já vislumbram os dias em que serão superados por sistemas cognitivos capazes de ler em segundos mais artigos científicos do que eles podem ler em ano inteiro…
Nesse agora não há um único ser humano que não esteja angustiado e desesperado pela criação de valores que sustentem um sentido humano para o mundo que, distraídos por jogos de valor e distinção, acabamos por fazer emergir.
Na luta por dar um sentido singular, pessoal e histórico a nossas existências, acabamos por permitir que dispositivos conceituais fossem tidos como medidas do valor da existência humana. Uma trajetória de vida, a realização de um propósito, a construção de uma obra, da própria vida como obra de arte, nos manteve entretidos.
Do desejo de lutarmos pela glória e pela imortalidade em nossos feitos, conseguimos criar um mundo de dispositivos que nos envolvem e se desenvolvem se alimentando de nossas vivências. Nossas existências individuais se tornaram objetos de extração, exploração e prospecção.
Dados são a nova commodity da economia do século XXI. Com a informação é possível mapear o que somos, nossos modos de ser e a forma como tendemos a agir. Somos os ratos no laboratório da mega máquina que estende seus tentáculos por todo o planeta.
Foi para evitar essa distopia em que estamos adentrando que Nietzsche nos exortou a criar valores.
Se não conseguirmos abandonar nossas ilusões a respeito do que tacitamente acreditamos que dê sentido à existência (a resposta para isso não é algo que o dinheiro ou o poder possam comprar) e criarmos valores, onde até mesmo o mistério e a incerteza tenham uma morada permanente, as distopias apocalípticas vão se espalhar como epidemia até que se auto realizem numa forma de suicídio coletivo. Já até racionalizamos isso de modo inumano na forma algorítmica que chamamos de “destruição mutuamente assegurada”.
Precisamos reativar a potência que nos trouxe da condição ancestral, daquilo que no momento crucial da antropogênese nos fez persistir: a criação de valores generosos e plurais, vastos e diversificados é a resposta para esta crise entre a passagem e o devir e a extinção de nossa espécie.
Por Elias J. Silva
Seu artigo nos conecta com uma realidade desafiadora e esta abordagem há poucas décadas, sei lá, 20 a 30 anos poderia ser rotulada como ficção científica exibida nas grandes telas ou nos livros de 400 páginas. Agora é a realidade em escala que nos atinge frontal, concreta e virtualmente. Parabéns, pela clareza e percepção deste conteúdo que nos atinge e nos orienta a fazer um caminho de volta mesmo com os pés no presente e no futuro, apesar das incertezas e ruínas civilizatórias.