Ambiência e humanização: Mercadoria ou bem comum?

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Estou há cerca de 60 minutos aguardando para levar uma paciente ao Hospital Psiquiátrico para internação. Em um Pronto Atendimento do SUS que funciona em um prédio antigo e bastante avariado externamente e razoavelmente conservado em sua parte interna. Curiosamente sinto que a ambiência é bastante sintônica com o sentimento das pessoas que buscam o atendimento.

Há um aspecto da ambiência que mesmo sendo constantemente trabalhada não se desgarra do estado de espirito dos usuários e trabalhadores. O sentimento de revolta, de humilhação e autocomiseração é simultâneo nestes parceiros de espera. Pelo que observo o grupo já espera em torno de 10 a 30 minutos para ser atendido. São vários passos para cada atendimento. De modo que da entrada e a saída do doente e seus familiares podem se passar várias horas.

A ideia do Pronto Atendimento é de dar preferência aos casos mais graves. O protocolo de atendimento está em fase de implantação. Ou seja, muito tempo ainda vai se passar antes que a cultura local internalize o modo de atendimento que lhe é oferecido.

Na minha espera vou compondo e interferindo na cena com meu jeito peculiar de ser. Assisto a um filme em meu laptop. Com isso conquisto olhares simpáticos e atentos das crianças e meio que desarrumo o ambiente de hostilidade incessante.

O atendimento na sala 2 que fica uns 10 metros da sala 9 é para crianças e adultos com disfunção respiratória ou necessidade de administração de medicação parenteral.

Então, estou a alguns passos adiante, em frente frente a sala 9. É o guichê de entrada para os pacientes em situação de urgência e emergência psiquiátrica. Aqui testemunho uma rápida sucessão de frases. Parece uma discussão. Palavras ríspidas, trocadas entre uma familiar que vi chegar ao serviço de táxi e a atendente do lado interno do vidro (que separa quem espera o atendimento e os trabalhadores e doentes que já estão sendo atendidos). Lá dentro eles esperam a alta ou a vaga para internação psiquiátrica em algum dos hospitais conveniados ao SUS. Podem ficar até oito dias nesta espera, ou tratamento.

Visivelmente melhor vestida e bem falante a acompanhante, indignada, recolhe da escuta os comentários tecidos pela Enfermeira ou AS com que se desentendeu. Em seguida dispara uma série de ligações telefônicas onde busca os recursos da ouvidoria que julga que poderiam lhe fazer sentir-se retratada e compensada pelo estresse que reverbera ao longo do tempo da espera. Mesmo que tenha sido apenas por alguns segundos a dita injúria extrapola os limites do serviço e ascende em direção ao gerente administrativo.

Os demais usuários assistem a cena de alguém que sabe expressar em linguagem culta a indignação que suportam calados rotineiramente. Mas a tensão ambiente é constante. Vez ou outra se ouvem frases soltas que evidenciam o sentimento comum de estarem, todos, sendo mal tratados.

Penso comigo que esta impaciência se manifesta com muita intensidade no momento em que temos que tratar do corpo que carrega nossas singularidades. Aparece com força nestas horas o simbolismo ritual que define o valor de cada cidadão. Há uma confusão entre o mundo do consumo, do individualismo e do ter com o bem comum. Num local de atendimento e cuidado nada desses valores de mercado se aplicam.

Se pensarmos que buscamos uma mercadoria em um serviço de saúde, teremos colocado uma etiqueta de preço no valor da vida humana. E ela será medida em forma de distinção numa escala que vai do desumano absoluto, reservado para os comuns – a maioria, portanto, até os raros que podem pagar por um tratamento verdadeiramente humanizado.

A dor, aqui nesse lugar, se reveste de uma intensa significação. A contingência que traz as pessoas até este lugar de padecimento é temporariamente esquecida. Por momentos que vem e vão, esquentam e esfriam, o mais importante é o que o lugar, suas paredes, o piso, a face dos trabalhadores que atendem, e os corpos sofridos de quem espera pelo cuidado, estão a gritar o tempo todo: – Este é o lugar dos pobres, dos fracassados, dos viciados e dos que não podem pagar pelo produto, pela mercadoria que parece se tornar a dignidade humana.

A dignidade humana se mantem em qualquer contingência que possamos imaginar. Ela é a mesma no momento em que tomamos um sorvete em um Shopping Center ou na hora em que vamos perdendo a consciência em uma sala de cirurgia. Durante um passeio no parque, ou quando desviamos de um mendigo, de um viciado em crack, ali toda a grandeza e significância ou insignificância humana está presente.

Um lugar de padecimento é fruto de um arranjo social. Da necessidade coletiva que temos de nos classificarmos e rotularmos como vencidos ou vencedores.

Por isso, certos lugares da cidade, como um serviço de emergência do SUS, podem ter uma equipe de trabalhadores relativamente bem remunerados. Mesmo que o estacionamento esteja lotado de carros novos. Mesmo que a renda de muitos usuários possa ter aumentado e os programas sociais e de renda mínima permitam que muitos dos usuários cheguem ao local de atendimento em seus carros ou de táxi. Mesmo com tudo isso, os habitantes de uma cidade podem ter formado um consenso silencioso: A alma do lugar é marcada pelo seu caráter de sofrimento simbólico. À doença individual, se soma a dor social.

A dor e o desconforto, dos doentes e dos familiares que os acompanham, é mais do que a contingência de um padecimento inesperado ou resultado de uma negligência no cuidado de si mesmo, de uma criança ou de um idoso. É a de simplesmente estar ali com toda a carga de sentido que este estar traz impregnado em si.

O pacto silencioso (que a tradição e a cultura local vão tecendo dia após dia, ano após ano) se materializa na geografia da cidade na forma de locais de padecimento, de expiação, de celebração, entre outros sentidos….

É assim com as igrejas, as prisões, os hospitais e os grandes centros de consumo. Num lugar celebra-se o ritual da compra. E a compra é relacionada ao sucesso. Em outros se corporifica o lugar comum da solidariedade emprestada com antecedência. É assim que preferia que fossem chamados os impostos. O resultado de seu investimento é o que chamamos de bem comum.

O serviço público tem este caráter de ser o responsável pela entrega de uma mercadoria única. Não é mercadoria no sentido de que sua posse é difusa. Assim, a relevância de um serviço público é muito distinta daquela que possui a mera mercadoria. Não é propriamente de uma troca que se trata.

As pessoas pagam seus impostos e com isso garantem um bem de ordem completamente diversa do tipo bem representado pela mercadoria. É um bem, em um sentido preciso, muito mais rígido e concreto do que a mercadoria. Mercadoria é algo fluído em que praticamente tudo e todos podem ser transformados. O bem comum é algo que tem uma localização e uma concretude muito mais precisa.

Está relacionado ao prazer dos encontros, do respeito mútuo e da estima. Da resignação diante das dores da existência e da irresignação diante dos sofrimentos que produzimos ao renegarmos a responsabilidade pela tessitura solidária dos espaços privados e públicos.

Para entender isso é preciso olhar. Estar de fato presente e ausentar-se de si. Ser como um estrangeiro em sua terra, em sua cidade, em seu itinerar laborioso. E então ver, que o que é considerado um serviço insuficiente em Porto Alegre, seria visto como um oásis no deserto, em um Estado africano falido; ou um centro de excelência no interior do Agreste, do Pantanal ou da Amazônia.