O SUS que dá certo é também se reencontrar com a essência do nosso trabalho

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A gente frequentemente realiza um trabalho mecanizado, rígido e burocrático. Produção, sobrecarga e ritmo de trabalho apressado são comuns nos ambientes de trabalho em saúde. Essas práticas marcadas pela produtividade e rapidez com que as coisas acontecem nos impedem de compreender a vida de nossos usuários como ela realmente é. A “insensibilidade” dos encontros pode ser um sintoma de nossas práticas fragilizadas por um sistema perverso e maior que nós.

 

Atualmente trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em um município da Região Metropolitana de Recife. Todas as terças realizo um trabalho junto com a médica psiquiátrica do serviço de articulação em rede com Unidades de Saúde da Família (USF) para visitas domiciliar e discussão do caso. A visita que me motivou a escrever esse relato aconteceu na casa de dona B; uma senhora que mora com quatro filhos, sendo que três deles possuem diagnóstico de esquizofrenia.

A casa de dona B. fica localizada em uma região de difícil acesso, de estrada de barro. Sua residência fica em um pequeno sítio afastado da comunidade. O interior da casa possui rachaduras nas paredes, móveis desgastados pelo tempo, fiação de energia solta pela casa. O motivo da visita foi dialogar com seu filho A. que não quis conversar com a equipe do CAPS e nem com a Agente Comunitária de Saúde (ACS), e ficou em seu quarto fechado por pedaços de madeira de um antigo guarda – roupa. Mas o que me chamou a atenção foi seu irmão R.

Durante a visita R. um dos filhos diagnosticados com esquizofrenia ficou todo o tempo ao lado da mãe, em silêncio. R. não havia tomado o remédio da manhã. Estava descalço, lábios presos, cabelos grandes e despenteados, e um olhar incógnito e compenetrado que ora olhava para mim ora olhava para a médica. Um olhar realmente incógnito e compenetrado para mim e para a médica. Nesse momento sinto o medo que se manifesta como a possibilidade de fugir rapidamente dali ou a defesa de um possível ataque surpresa.

Após aproximadamente 1h de diálogo com essa família fizemos as devidas orientações e o convite para os irmãos participarem do CAPS. R. sinaliza com a cabeça que tem interesse em ser admitido no serviço. Finalizamos a visita, entramos no carro e do retrovisor do veículo vemos R. em pé esperando que o carro suma completamente de sua visão.

Chego ao CAPS e fico pensando nessa visita e em R. O medo que a loucura aparentemente nos causa, o medo de estar próximo a alguém não medicado, o medo de alguém desconhecido com transtorno mental/sofrimento psíquico. E daí repenso o lugar histórico da loucura que ela ocupa em nossa sociedade e em minha trajetória profissional. E repenso também meu lugar enquanto profissional da saúde atuando com pessoas que possuem um transtorno mental/sofrimento psíquico. Acesso meus medos, receios, preconceitos e estigmas adquiridos ao longo da vida. Tem coisas que precisam ser mudadas e tu nem percebe, né meu filho? Tento separar mentalmente as coisas que fazem sentido das coisas que nos são postas como supostas normalidades. Vou repensando cotidianamente as minhas práticas profissionais.

Acho que o SUS que dá certo é a gente ter a possibilidade de se reencontrar com a essência do nosso trabalho: o acolhimento do outro em sua singularidade. E no âmbito da saúde mental compreender o acolhimento como possibilidade de inclusão social.