Um experimento comportamental realizado com primatas ajuda a entender como modos de pensar e de viver surgem para resolver problemas complexos e permanecem após terem se tornado inúteis. A espécie humana é muito adaptada a criar soluções novas para novos problemas. No entanto, também pode se tornar prisioneira das crenças intersubjetivas que se tornam instituições na forma de legados e tradições.
No citado experimento, é oferecido a uma comunidade de símios dois recipientes com alimentos iguais. Ambos muito agradáveis, mas de cores diferentes, um azul e outro verde. Os macaquinhos comem o alimento azul e verde dos dois recipientes, como se fosse a dádiva de algum deus benevolente.
Depois de algum tempo a realidade é perturbada por um efeito ao qual o grupo de símios pode apenas reagir. O recipiente verde passa a ter os mesmos grãos de milho. Mas agora, muito amargos.
Rapidamente o grupo se adapta. Um aprendizado se forma e logo todos aprendem a comer apenas os grãos azuis que permanecem doces. Metade do alimento disponível é desprezado.
Mais tarde, mesmo os filhotes que jamais comeram o milho verde e nunca sentiram seu amargo, comem apenas o milho azul. Um legado foi transmitido. Uma tradição se estabeleceu.
Os cientistas voltam a alterar o ambiente recolocando o sabor doce no milho verde. Então, algo muito interessante e significativo sobre nós, os homo sapiens sapiens, acontece.
Como a estrutura hierárquica do pequeno bando está assentada na tradição do bom milho azul e do mal milho verde, todos os indivíduos mais respeitados no grupo, líderes e mães, não conseguem escapar do legado e da tradição. Só comem o milho azul e seguem desprezando metade do alimento disponível.
O que surgiu de uma necessidade do gosto e do prazer se tornou, por força do legado, uma tradição difícil de ser alterada. Dado que o amargo era tão nutritivo quanto o doce, e se fosse a única opção disponível, o mais provável é que uma parte do grupo passasse a gostar do amargo bem antes do bando todo morrer de fome.
No contexto do experimento, podemos pensar que mesmo muitas gerações depois daquela que viveu a “crise do amargo”, aquele pequeno esboço de uma sociedade ainda seguiria a tradição de desprezar metade do alimento disponível em nome de uma crença inútil para sua sobrevivência biológica, mas muito útil para dar consistência a ficção de uma identidade tradicional e, portanto, cultural.
Os primeiros bandos e tribos humanas precisaram muito destas tradições e legados para resolver problemas de subsistência que ameaçavam a sobrevivência da espécie. Nossa inquietação e ansiedade com os ruídos e movimentos próximos selecionou, por probabilidade estatística, os indivíduos que eram capazes de forçar a mente a prefigurar um sentido imaginativo. Ruídos nos arbustos: vento, ou um ser misterioso? Quem pensava “não é nada”, mais frequentemente virava o almoço de algum predador. Quem pensava no desconhecido, seguia o medo e se afastava. Vivia mais um dia com a chance de passar adiante seu código genético e aquelas narrativas de sentido que constituem o legado e a tradição de seu grupo.
Naquele momento, centenas de milhares de anos atrás, abandonar um recém nascido deficiente, um idoso sem forças para seguir o bando nômade e sacrificar um herege em honra a um deus irado faziam sentido diante da imensa fragilidade humana frente às agruras do clima e a fúria dos elementos. Ainda não existiam pessoas, indivíduos com interesses e expectativas singulares. O bando, a tribo e suas crenças compartilhadas é que davam sentido e significado a cada existência particular. A ponto de ninguém se ver como um indivíduo livre para se fazer a si mesmo.
Atualmente, a ideia de pessoa e indivíduo se expandiu. As possibilidades se ampliaram muito em relação ao que é possível vivenciar e sentir da perspectiva de uma pessoa, um indivíduo, um sujeito consciente. Cada um de nós se vê no centro de uma história única. Realizamos a fantasia da “jornada do herói” no destino que nos acontece.
Entre as pessoas que nos lideram, que têm mais dinheiro, poder e fama, os legados têm um peso muito grande. Ao seguirem uma tradição e assumirem um legado de sucesso estas pessoas se entregam a uma certa ilusão de imortalidade.
Assim, pessoas e sujeitos, indivíduos racionais que deliram estar fazendo a si mesmos, de modo independente de sua cultura, tradição e legado só apareceram recentemente na história ocidental. É ainda mais nova a noção de fazer algo com o que a cultura, o legado e a tradição fazem de nós.
Arrastamos um pesado legado e muitas tradições inúteis. Algumas, combinadas com outros efeitos de nosso desenvolvimento tecnológico, podem levar à ruína da civilização e, no limite, da própria espécie.
O sexismo, o preconceito, o racismo, o fanatismo religioso, a pseudociência, entre muitos outros legados e tradições constituem verdades que as condições atuais tornaram mentiras.
O engodo, a mentira, a superstição, a crença, e outras formas de ilusão resistem as verdades robustas e consistentes da ciência. Precisamos urgentemente investigar que “grãos de milho” voltaram a ter um sabor agradável. E, ainda mais urgente, quais novos sabores e alegrias já estão disponíveis… Enfim, quais legados podem ser abandonados…
Nós já criamos verdades novas. Ideias e conceitos muito mais potentes para afirmar a vida num mundo com 8 bilhões de humanos. Não somos mais os proto humanos que agora nos ajudam a formar ideias mais precisas e realistas a respeito de quem somos. Não somos mais as poucas centenas de milhares de caçadores coletores que fomos.
Há muito nos humanos primitivos que precisamos recuperar, porque o perdemos e permanece sendo essencial para fortalecer nossa existência. É o caso de pensarmos a nós mesmos como integrados e dependentes do fenômeno complexo que é a vida na terra e provavelmente em outros sistemas solares.
Do mesmo modo, há o que precisamos abandonar. Aquele legado e aquelas tradições que temos que deixar passar, para que o novo venha a nos tornar viáveis mais uma vez.