A falta não tem relação com o desejo. O desejo é anterior a qualquer necessidade, ele cria necessidades através do imperativo do movimento. Estar sempre com saudades não significa que não se consiga ficar sem àqueles de quem sentimos saudade. E isso, além de ser verdade, é muito mais romântico.
O que reservamos para nós mesmos, é uma certa dose de sofrimento com qualquer ausência afetiva. Um tipo de afecção originada na consciência da distância. Algo que já tínhamos em relação à vida mesmo antes de conhecermos os que nos fazem sentir saudades.
Nos percebemos vivendo uma vida menor porque fomos condicionados a sentir qualquer tristeza, dor e desconforto como injustiça ou culpa. Somos todos assim porque não nos damos conta de que a vida é plena.
Não sabemos como terminaremos, nem qual caminho trilharemos até o fim. Não controlamos, mas interferimos com o mundo, a cada passo que damos.
Se tudo é reação e o desejo não visa um objetivo, mas faz com que andemos, então estamos redimidos das dívidas. Podemos prometer, mas sem nenhuma certeza.
Apenas reconhecemos as forças que se desdobram em nós. Uma força quer estar com alguém, outra faz querer estar com outro, ao mesmo tempo em que também queremos e rejeitamos a solidão. Todos são impulsos simultâneos em disputa por um gesto que converta as possibilidades em algum acontecimento.
Nesse estado desejante, o que de fato fazemos com os instantes de nossa vida se tornam sagrados e sublimes.
Parece que fazemos coisas sem motivo e, portanto, sem finalidade. Todo gesto é uma resposta a múltiplas provocações do desejo. A força não está no ponto de chegada. Além desse momento adiante ser – do nosso ponto de vista – incerto, o que vem adiante é o resultado da tensão entre múltiplas possibilidades.
Dizer que poderíamos agir por um impulso monolítico é supor uma hierarquia onde há apenas multiplicidade de impulsos saciados por gestos que se mostram singulares.
Podemos desejar infinitamente, mas só podemos gozar um instante de cada vez. E a cada instante gozado, perdemos todas as possibilidades as quais renunciamos.
Estar se voltando em uma direção, ceder a uma inclinação, implica em renunciar a alguma instância do desejo e das possibilidades. Algo se cristaliza em um acontecimento único e eterno, entre as incontáveis probabilidades mortas.
Se não há finalidade, não há culpas morais. Apenas responsabilidade e cumplicidade com tudo o que acontece.
A regra é afirmar a vida. Assim, só esta responsabilidade existe: não diminuir a vida.
Vivemos, então, a intensidade da existência. Isso não implica em bem ou mal, mas sim, em bom ou ruim para a vida como um todo, dado que espécies e indivíduos são particularidades da vida como fenômeno mais amplo.
Somos testemunhas da vida acontecendo. Em qualquer acontecimento do qual temos consciência, nós vemos no agora os desenlaces futuros que podem ser ruins. Por isso é difícil ser consciente, não porque o mal ou o bem, em si mesmos, sejam ou configurem o acontecimento.
Como resultado das forças em tensão no jogo da existência, o acontecimento é inocente. Porque interferimos, a partir das forças desejantes que nos movem em interação com as forças externas a nós.
É o acaso que nos protege em nosso caminhar, seja ele atento ou distraído.