Uso da escuta qualificada por estudantes de medicina como método de humanização no interior de SP
Em minha primeira visita domiciliar tive a oportunidade de conhecer brevemente um recorte da vida de uma usuária do SUS, idosa que pertence a área de atendimento da ESF Jardim Leonor, em Presidente Prudente – SP.
Eu estava apreensiva por nunca ter participado de uma visita domiciliar. Além disso, a professora nos enviou para a visita sem antes termos acesso ao prontuário completo, fato que me deixou com mais medo, porém após a visita percebi que esse acontecimento foi essencial para evitar julgamentos prévios e permitiu que eu fizesse muitas perguntas para de fato conhecer a história da idosa em questão.
Mesmo com receio, fui surpreendida com a gentileza da paciente, que foi muito receptiva e logo convidou as estudantes do curso de Medicina a adentrarem em sua residência. Meu medo de não conseguir conduzir a conversa com uma paciente desconhecida foi eliminado e tivemos uma conversa muito espontânea e permeada por risadas no início, fato que deixou evidente a solidão vivenciada pela senhora que residia sozinha em uma humilde casa no bairro Jardim Leonor.
Inicialmente, a paciente relatou que era tabagista, hipertensa e que possuía depressão desde a adolescência. Como futura profissional da saúde, questionei se ela seguia os tratamentos recomendados pela equipe multiprofissional da ESF Jardim Leonor e ela revelou que não os seguia, pois preferia utilizar compostos naturais, produzidos por ela com receitas consideradas patrimônio cultural familiar, passadas de geração para geração na família de descendência indígena. Como eu desconhecia essa realidade, demonstrei empolgação para entender melhor sobre tais compostos naturais e ela prontamente nos convidou para conhecer sua pequena horta, de cultivo próprio em seu quintal, de onde extraía os ingredientes para as receitas. Fiquei maravilhada com a sabedoria popular demonstrada pela paciente, que apontava para as plantas e rapidamente dizia para quais problemas de saúde elas eram indicadas.
A idosa contou que antes frequentava o grupo de Promoção à Saúde na ESF, que fornece orientação e acompanhamento multiprofissional para os usuários do SUS, hipertensos, diabéticos e tabagistas, na ESF do Jardim Leonor. De acordo com os princípios organizativos: Regionalização e Hierarquização no SUS, os serviços de saúde devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a uma determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos, e com definição e conhecimento da população a ser atendida. No caso, o grupo de Promoção à Saúde, frequentado pela paciente foi criado em decorrência da demanda da população abrangida pela ESF Jardim Leonor. No entanto, a idosa referiu que parou de frequentar o grupo após a piora da depressão. A paciente também revelou que passou por uma internação psiquiátrica após uma tentativa de suicídio.
A idosa relatou – com a voz fraca e os olhos lacrimejando – que havia perdido o marido há poucos anos, em decorrência de um câncer e, em seguida, um filho por suicídio e o outro filho em um trágico acidente. Tais perdas contribuíram para o isolamento da paciente, que afirmou evitar sair de casa e não possuir vínculos afetivos fortes com ninguém. Esse relato despertou um sentimento de compaixão em mim e pude compreender melhor porque a paciente não aderia aos tratamentos prescritos pelos profissionais da saúde, uma vez que ela entendia que seu marido faleceu sob a assistência de tais profissionais.
Notamos que a idosa armazenava todos os medicamentos de forma incorreta, em um recipiente plástico exposto na sala da residência. Dessa forma, muitas vezes se esquecia de ingerir ou ingeria de forma duplicada o mesmo fármaco. Em decorrência disso, além das orientações, nós decidimos presentear a paciente com uma caixa organizadora de medicamentos, com divisórias para colocar os comprimidos de acordo com o horário prescrito para ser administrado, além da caixa possuir ilustrações que facilitam o entendimento da usuária, que não conseguia ler adequadamente. Ela nos agradeceu, ouviu atentamente sobre as instruções para armazenar os medicamentos de forma correta e nos permitiu mostrar como distribuir os comprimidos para que ela saiba como proceder nas próximas semanas.
A gratidão mostrada pela idosa me deixou muito feliz e pude compreender a importância fundamental da visita domiciliar para a construção da saúde dos cidadãos e a sua relevância no Sistema Único de Saúde, pois agora sei que a paciente terá maiores chances de seguir corretamente o tratamento prescrito, o que evitará complicações individuais e sobrecarga ao Sistema Público.
A Facilitadora do Programa de Aproximação Progressiva à Prática (PAPP/FAMEPP/UNOESTE) utilizou o “Arco de Maguerez”, após a realização da Visita Domiciliar, para estimular “reflexão na ação”.
Cada acadêmico do Curso de Medicina teve oportunidade de criar questões de aprendizagem, a partir da utilização da Metodologia Ativa da Problematização, utilizada na Graduação em Medicina, na UNOESTE, no campus de Presidente Prudente, no interior de SP.
Após a busca em referências selecionadas, estimulada pela Facilitadora do PAPP/FAMEPP/UNOESTE, pudemos concluir que a “Política Nacional de Humanização” estimula a escuta qualificada, oferecida pelos trabalhadores às necessidades dos usuários SUS. Por meio dessa ampliação da escuta, é possível garantir o acesso oportuno desses usuários do SUS, às tecnologias adequadas às suas necessidades de saúde, permitindo o desenvolvimento da autonomia dos clientes.
Os acadêmicos construíram Planos de Ação, a partir da análise das Necessidades de Saúde, dos usuários SUS visitados, para serem aplicados nas próximas Visitas Domiciliares, com foco na “criação de ambientes saudáveis” na área de abrangência da ESF.
Referência:
Silva SP, Santos MR. Prática de grupo educativo de hipertensão arterial em uma Unidade Básica de Saúde. Arq Ciênc Saúde. 2004;11:169-73.
BRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Portaria nº 2436 de 21 de Setembro de 2017. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
Por Alex Wander Nenartavis
Parabéns à Acadêmica Daniela Nakatani Gonçalves, pelo belo relato.
A escuta qualificada permite que o futuro médico possa adquirir informações sobre cada usuário do SUS. Essas informações vão possibilitar escolhas e resoluções de suas necessidades de saúde e acabam por se tornar formas de prestar assistência de qualidade. Por meio dessa assistência é possível reconhecer e acolher, empaticamente, as necessidades do cliente.
Congratulações!