Traição não é sinônimo de infidelidade. Trair é frustrar uma promessa, geralmente mútua. Infidelidade é uma característica de tudo o que não pode conservar alguma ou algumas de suas características. Dado que ninguém pode sustentar sua condição unilateralmente, a fidelidade não é incondicional ou independente. É um resultado que não pode ser efetuado de modo isolado.
Então, consideremos o seguinte: A monogamia não parece ser o comportamento mais corriqueiro no tempo de existência da espécie humana. O ato sexual é como a nossa vontade de viver.
Relacionar o ato sexual com a gestação, em termos conscientes, é muito recente. Primeiro desenvolvemos a linguagem reflexiva, como forma de produzir conhecimentos intersubjetivos, ao longo de dezenas de milhares de anos.
Os diferentes modos de vida nessa maior parte da existência de nossa espécie são, em grande parte, desconhecidos.
Só muito recentemente, com a escrita e a agricultura, desenvolvemos ideias complexas como a da família, fidelidade e ciúmes em sociedades baseadas em tradições e instituições. Patriarcado é algo muito recente na escala de tempo da existência da espécie humana.
Possuir o corpo de alguém, para além da alternância entre ser sujeito e objeto no ato sexual, me parece um conceito muito estranho. A suposição de que podemos prometer o incerto e indeterminado ser do futuro que iremos nos tornar à alguém é igualmente algo historicamente circunstancial.
Não se trata de que os animais não possuam formas de linguagem. Eles têm e muito dessas linguagens, nós desconhecemos. É a perspectiva humana que tem relação com o efeito reflexivo de pensar o próprio pensamento através da linguagem. Dito de outro modo, produzimos conceitos e valores em nossa forma de linguagem.
Nós sabemos, por inferência, que existem sentimentos. Mas só os conhecemos em nós mesmos. Daí cremos que os outros sentem como sentimos. Também costumamos pensar que nossos sentimentos conduzem nossos atos.
Então concluímos que os outros fazem o mesmo. Então é precisamente a diversidade de comportamentos que parece sustentar que podem ter existido valores e modos de vida muito diferentes dos nossos.
Projetar nas formas de linguagem dos animais, algo como ciúmes ou o sentimento de posse sobre o corpo de seus semelhantes é um salto enorme.
Acredito que as pessoas sofrem pelo mero comportamento das outras. Afinal criamos valores e deles geramos expectativas sobre os modos de agir. Mas isso se dá num contexto de imensa variabilidade.
Eu realmente gosto de pensar numa era humana em que a sexualidade foi exercida em bases completamente diferente da que fazemos agora. Mesmo atualmente, a existência de pessoas que se amam e se cuidam, para além dos padrões do comportamento sexual de cada um, é alentadora.
Então, o patriarcado, como forma de ordenamento de relações sociais, é confuso, recente e específico.
É o tipo de modo de vida que pode tornar impossível a adaptação a condições de existência em constante mudança.
Nós somos uma espécie que existe sob pressão evolutiva. Ou criamos modos de vida ou deixamos o palco num piscar de olhos.
Muitas pessoas sofrem, pela frustração de uma expectativa, em termos do padrão de comportamento sexual de seu parceiro.
A mera quebra de um contrato não seria razão para o sofrimento. Bastaria executar a cláusula que permite a ruptura… Mas, sentimos muita dor pelo outro não ser o que é, e em acordo com nossa expectativa.
Não obstante, amar implica numa assimetria insuperável. Você entrega sem jamais ter a certeza de ser retribuído. Trata-se do efeito de o futuro ser absolutamente indeterminado de nossa perspectiva.
A despeito disso, somos capazes de gestos amorosos incessantemente.
Sem esses atos sequer podemos efetuar nossa humanidade no sentido biológico.
Então, condicionar à absoluta retribuição a entrega de nossa energia vital em gestos amorosos e plenos de gratuidade é um preconceito. Na prática, isso nem é tão comum.
O fato desse preconceito ser quase universal em nosso atual modo de vida não o torna mais do que um outro modo além de muitos outros possíveis.
A verdade é que o amor que sentimos coincide com o cuidado que devotamos aos nossos afetos, para muito além de recompensas ou retribuições.
O amor incondicional, simplesmente, não é raro. De certo modo é a regra geral das relações humanas.
Por patrinutri
Que boas reflexões vc nos traz Marco!
Gostaria de acrescentar mais uma faceta nesta reflexão já tão instigante, o amor e sua manifestação em atitudes é também um espelho dos nosso valores e o que sentimos por nós mesmos. Por isso penso que a fidelidade é antes de tudo uma honestidade com o que sentimos pelo amado/amada, um respeito a este sentimento que vive em nós e que chamamos de amor. Além disso, para mim todos os sentimentos passam pela comunicação, num sentido de como o definimos ou nomeamos. Assim o que constitui o amor é também uma relação dialógica entre os seres que se amam.