O desafio de mudar o que nos determina

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Quando agimos, afetamos nosso entorno de diferentes maneiras. Por vezes impactamos mais um alvo secundário ou colateral, do que o que era nosso alvo principal. Acima de tudo, o primeiro impacto de nossas ações se dá sobre nós mesmos. Independente do que nos motiva, ou mais propriamente do complexo processo que antecede qualquer gesto, não podemos evitar o peso que nossas ações têm para a definição de quem somos. Qualquer gesto tem efeito, em primeiro lugar sobre o próprio sujeito que age.

O que fazemos só afeta o ambiente, de modo secundário. Como a vida consiste num fluxo constante de instantes, cada acontecimento se torna eternamente imutável. Como tal, os acontecimentos decorrentes de nossas ações, são uma fonte de definição sobre quem somos. Como damos muita importância a nossa identidade, o que fazemos impacta a nós mesmos, em primeiro lugar.

Assim, nossos atos consolidam nossa ideia de identidade ou nos surpreendem indicando mudanças que podem se sobrepor a todo o nosso passado. Por exemplo, se numa determinada situação, reagimos causando uma morte, mesmo que nunca tenhamos feito isso antes, mesmo que seja por acidente ou imprudência, por vingança ou crueldade, seremos marcados pela condição de homicidas ou assassinos.

Curiosamente, vivemos iludidos com o perigo de que algo seja feito conosco, enquanto, buscamos mais justificar o que fazemos do que propriamente controlar nossos gestos. Mas, se é um fato, que podemos ter expectativas razoáveis sobre não sermos importunados, também é certo que não podemos jamais ter certeza sobre o comportamento alheio. Não obstante, supomos com razão, que a margem de controle de nós mesmos é maior do que nosso poder de controle sobre os outros.

Não podemos de modo algum controlar o que os outros pensam, e daí o absurdo da pretensão de saber como vão agir. Podemos influenciar, mas jamais controlar os efeitos de nossas tentativas de influenciar os pensamentos ou gestos alheios. Os sentimentos e pensamentos alheios permanecem opacos para nossa mente.

Toda a nossa noção sobre as motivações e gestos das outras pessoas decorre das analogias e suposições que fazemos a partir de nossa introspecção. Nossa mais profundas suposições sobre a humanidade são projeções marcadas pela imprecisão e pelo preconceito.

Por outro lado, somos capazes de sincronizar nossas mentes na forma de crenças e valores compartilhados. Nossos sistemas neurocognitivos evoluíram por milhões de anos e compartilhamos noções de justiça e equidade com outras espécies de mamíferos como primatas, cetáceos e animais domésticos.

Então, muito desses equívocos sobre sermos mais capazes de alterar a vida das outras pessoas do que controlarmos a nós mesmos, ou de que temos acesso direto a mente das outras pessoas, podendo ter certeza a respeito de seus pensamentos ou sentimentos, decorrem de pressupostos ilusórios que constituem a formação de nossas crenças coletivas.

É verdade que uma pessoa pode fazer muito mal ou muito bem para bilhões de pessoas. Isso decorre da forma desigual como os recursos e bens produzidos pela espécie humana estão distribuídos entre os indivíduos. Porém isso não significa que possamos dizer que alguém responsável pela morte de milhões de pessoas, não esteja fazendo algo terrível consigo mesmo, ao mesmo tempo em que atua. Por outro lado, matar de forma industrial não se constitui num ato individual, assim como, nem mesmo uma indústria de eletrodomésticos pode existir pela ação de uma única pessoa.

A prova disso é que os bombardeios na guerra da Ucrânia e no conflito entre Israel e Irã, não podem ocorrer exclusivamente pela força das decisões dos comandantes militares. Antes, essas decisões se tornam possíveis por interações complexas de atitudes humanas, das quais não estão isentos os atos dos investidores das bolsas de valores que negociam pacotes de ações do complexo industrial militar, para ficar apenas em um dos vínculos de implicações econômicas.

Há no fenômeno da guerra, determinantes que incluem tradições religiosas e culturais que determinam os valores de combatentes desde a sua infância. Isso aliado ao efeito de massacres que atingem populações civis ao longo de décadas e desigualdades econômicas, certamente tem um papel na eclosão de conflitos sangrentos. No entanto, não é na especificidade de cada fator que a realidade social pode ser explicada. O resultado do modo de vida, em determinado contexto histórico, está relacionado ao complexo e caótico efeito das interações de todos os fenômenos e do conjunto virtualmente incalculável dos gestos de cada indivíduo no interior da estrutura das relações sociais.

Por isso, uma hipótese voltada para capacitar as pessoas a lidarem consigo mesmas de modo mais crítico e menos projetivo, pode ser um caminho para superarmos as ilusões inerentes às nossas crenças compartilhadas. Ou seja, é uma ilusão que o mal vem dos outros. A ruína, em grande parte, pode ser efeito das relações humanas. Desse modo, os pressupostos compartilhados na forma cultural e religiosa, têm grande influência sobre as ações dos indivíduos. E, por extensão, sobre a degeneração das estruturas sociais constituídas por populações de indivíduos que tiveram suas identidades formadas por crenças compartilhadas, por sua vez, baseadas em pressupostos espúrios.

Para ser direto, o pecado original é uma crença compartilhada espúria, porque julga a natureza humana, no que esse conceito pode significar no contexto religioso, como maligna por princípio. Daí surge um preconceito contra os modos de vida e pressupostos compartilhados pela humanidade por milhões de anos.

Durante os tempos imemoriais dos caçadores coletores, lançamos mão de estratégias que já não tem grande utilidade no contexto de uma população de nove bilhões de humanos. Mas, muito do que os fez persistir em meio à hostilidade do ambiente, ainda pode nos ser de grande utilidade.

Por outro lado, há suposições fantasiosas, especialmente nas religiões, sobre o papel da humanidade em relação ao fenômeno da vida, que estão levando a civilização tecnológica para vários caminhos que podem causar a nossa extinção.

Existe uma conexão direta entre os sistemas econômicos e religiosos ao longo da história das civilizações desde a Mesopotâmia e o Egito. Mas, na aliança entre pensamento teológico e sistema econômico, nas sociedades industriais dos últimos séculos, uma catástrofe se insinua em nosso futuro sobre a Terra. Para superarmos esse desafio, temos de rever nossos pressupostos e as crenças que nos movem em nossas ações.