A oralidade e o letramento: a antropologia na pedagogia

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Um dos erros comuns dos leitores desatentos da obra de Paulo Freire consiste numa interpretação de que o esforço por alfabetizar significa o resgate de uma dívida social dos letrados em relação aos pobres analfabetos que subsistem excluídos dos benefícios da civilização moderna. É verdade que a exclusão social pela extrema desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida causava repulsa no nosso querido mestre.

Mas o esforço por erradicar o analfabetismo não se dava como esmola aos iletrados, na concepção mais rigorosa da obra de Paulo Freire. Era em benefício da civilização moderna e letrada que Paulo Freire buscava dar voz à sabedoria ancestral dos iletrados.

Os iletrados constituem uma parcela significativa da humanidade que existe há cerca de 200 mil anos. A excêntrica e exótica forma civilizacional dos últimos séculos perdeu em diversidade e liberdade na submissão aos modos de vida do mercantilismo e capitalismo.

Mas as pessoas do neolítico nos legaram formas de ler e narrar o mundo em seu entorno, ao mesmo tempo em que davam formas humanas à parcela do mundo que é, efetivamente, humana. Os pobres das periferias urbanas e os remanescentes da paisagem rural, trazem ao lado de sua domesticação no modo de vida capitalista uma memória das estratégias de sobrevivência que era comum antes do desenvolvimento da escrita. Pode-se suspeitar que iletrados e analfabetos funcionais ainda possam acessar a forma da cultura oral ou a sabedoria imemorial da humanidade da qual os letrados da cultura europeia voluntariamente renunciaram em nome de sua suposta superioridade cultural.

Paulo Freire tinha como meta na pedagogia uma espécie de tratamento terapêutico do dogmatismo evolucionista que fazia os arrogantes letrados se sentirem mais humanos do que os pobres iletrados.
Acredito que o letramento, como projeto político, visava trazer ao gueto restrito dos saberes acadêmicos a riqueza da sabedoria ancestral e cotidiana, das pessoas que servem a produção da riqueza, mas estão excluídas do usufruto da produção de seu próprio trabalho.

O pressuposto é o de que as ideias circulam por entre as mentes desde a revolução cognitiva que deu origem à humanidade. Uma ideia viaja nas relações sociais de uma mente a outra. E nesse movimento o pensamento se expande.

As ideias, ao irem de mente em mente, sempre saem maiores do que chegam.

Dar voz aos iletrados permite enriquecer a cultura de uma importante parcela do saber, da qual por preconceito de classe e racismo, os letrados estão excluídos.

Marco Antonio Pires de Oliveira
01 de Novembro de 2024