Parindo a Clínica do Corpo
Ao olhar o nome no prontuário da próxima paciente que chamaria, veio-lhe a mente o rosto e a história de Andréia, jovem gestante que pedira "um encaixe" para uma consulta de "urgência". Com 23 anos, ela estava na segunda gestação, porém não no segundo filho.
Na primeira vez que engravidara, há 02 anos atrás, ela perdera a criança no sexto mês. Estela também fizera o pré-natal na primeira gestação e pode acompanhar toda a frustração e tristeza da jovem após a perda.
Foi um momento difícil, mas ela, como obstetriz experiente, ficou bastante próxima da paciente. Na semana passada Andréia tinha vindo para a consulta de rotina e entrava novamente no sexto mês. Até a semana passada estava tudo bem… o que terá acontecido para pedir uma nova consulta em tão pouco tempo?
Com o prontuário na mão, abriu a porta do consultório e procurou o rosto conhecido. Encontrou um olhar atento e ansioso procurando por ela…fez um gesto sutil com a cabeça acompanhado de um sorriso, pensando ou dizendo de forma inaudível "vamos?"
Notou o andar trêmulo, transpirando ansiedade e medo. Mal fechou a porta e já ouviu Andréia dizer, contendo um choro: "ele não está se mexendo". Os segundos se dilataram… um forte condicionamento profissional ordenou os procedimentos de "guerra".
Quase escapou de sua boca uma ordem para que ela deitasse na maca para auscultar o coração do bebê com o sonar… Ocorreu-lhe que era isto que Andréia esperava. Ansiedade é uma doença contagiosa. Notou que o seu coração também batia forte enquanto perguntava, tentando aparentar tranqüilidade: "desde quando? Você comeu bem hoje?". Até chegar à cadeira deu quatro passos terapêuticos para sua ansiedade. Olhou melhor para Andréia, respirou e teve uma súbita certeza do que estava acontecendo.
Olhou nos olhos de Andréia e disse: "calma… vamos deitar um pouco na maca?". Enquanto a ajudava a deitar-se ainda olhou para o sonar… confirmando a convicção de que não o usaria… pelo menos não ainda.
Andréia se surpreendeu quando ela disse: "feche os olhos e respire fundo". Pegou a mão fria de Andréia, apertou entre as suas e colocou-a sob a sua mão, ambas sobre a barriga. Respirou fundo e procurou se colocar numa postura totalmente atenta, concentrando-se no instante. Agora eram ali duas mulheres, reinventando o antigo compromisso de solidariedade e sabedoria feminina para partejar a vida.
Quanto tempo se passou? Não saberia dizer…o suficiente para que, sem nenhuma surpresa para ambas, ele começasse a se mexer com movimentos fortes e vigorosos dentro da barriga, sacudindo as mãos das mulheres e derrubando lágrimas da mãe.
Quando Andréia saiu Estela esperou as lágrimas diminuírem antes de chamar a próxima paciente. Agradeceu a si mesma ter-se deixado levar pela intuição e ter podido ajudar Andréia, não a suprimir o medo através da confiança nela como profissional ou na tecnologia de um exame, ou ainda através de uma explicação racional da ansiedade da gestante quando atravessa o "aniversário" de uma perda.
O que aconteceu foi que ela pode mediar uma "conexão", possibilitar uma vivência que estabeleceu uma conversa silenciosa entre mãe e filho e permitiu à Andréia aprender a conhecer e utilizar a sua própria força. A mesma força que inunda Estela quando participa de um parto.
Esther Vilela e Gustavo Tenório