Sertão: saúde, loucura e ternura
As palavras de Foucault me chegaram na primeira página de um livro que ganhei de uma grande amiga. Ela assim dizia: recorri a Foucault para resumir algumas abordagens nesses tempos com tantas histórias e fluxos para desvelar:“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir.”
Pensando nisso, senti-me provocada a escrever mais uma narrativa.
Recordara a sua chegada à cidade. Dentre tantas informações repassadas pela equipe, fora avisada sobre alguns casos de recorrentes internações psiquiátricas.
Que sabia ela sobre a loucura? A questão requeria tempo para ser pensada, estudada, repensada. Conheceria o território, consultaria as reservas da vida, tentaria perceber diferentemente.
Nascera no sertão – num lugar em que não se separava dos filhos doentes a não ser pela morte. Da loucura, contaram-lhe quando criança: da tia que resistia ao banho deixando as marcas das unhas na pele da avó, ouvia-se que tinha os olhos tão claros quanto as águas do riacho onde fincava os pés ao longo do dia. Do primo que de vez em quando sumia mato adentro dizia-se que todas as chaves deveriam ser escondidas para evitar que as engolisse. A imagem que guardara dele era do menino com o pano de café entre as mãos correndo e acenando para um ou outro carro que raramente passava levantando poeira pela velha estrada. Naquele pedaço de chão, a aparição de qualquer vivente era acompanhada de motivos para degustar o café quentinho passado no pano de algodão cru.
Os estudos na universidade, os longos anos desfrutando do mar e dos amigos que deixara na capital misturavam-se às lembranças da infância. Talvez, feito cantador que volta ao verso precedente à procura de rimas, conseguisse junto à equipe compor outros versos, outros passos que se ritmassem pelo caminho.
A paisagem da pequena cidade aonde viera trabalhar tinha traços daquela infância. Cães, cabras e galinhas viviam soltos pelos terreiros. Os bois surgiam da beira da estrada e se atravessavam lentos diante do carro forçando-a a dirigir devagar. Nem lembrava mais há quanto tempo chegara ali.
Disseram-lhe que ia trabalhar no meio do nada. Grande equívoco: estava era no meio de tudo!
Mufumbos e muçambês floridos na estrada, cravos vermelhos e amarelos, hibiscos e trepadeiras emprenhavam-se ao vento fazendo festas nas janelas das casas e nos terreiros.
Estranhara aquela quantidade de sois e luas rabiscados por ela e marcados no calendário trazido por seu “Manuel;” o sanfoneiro que não esquecia uma só nota das canções na velha sanfona, dizia não guardar na cabeça a hora dos remédios. Ali, naquele calendário, percebia o tempo medido.
Terminado o atendimento no posto, apenas algumas visitas e retornaria para casa. Ria de si mesma ao lembrar os tantos palavrões atirados por “Sandra” em sua direção. Após inúmeras tentativas previamente planejadas e fracassadas, naquele dia, conseguira aproximar-se da moça apenas desenhando casas, bonecos e coqueiros que se duplicavam sob os “poderes mágicos” de um papel carbono. E a toalhinha que ganhara de “Rita”? Enrolada em celofane com laço de fita, fazia-lhe cócegas sussurrando-lhe ao pé do ouvido: “Essa é pra mãe, essa é pra doutora…”
Seguia apreciando o lugar como quem confere coisas que de tão intimamente conhecidas pareciam ser suas. Sentia-se reconciliada com a vida: aprendera a desconhecer absurdos. Reconhecia que o tempo ali lhe ensinara que o que parecia estar fora do lugar compunha uma harmonia de diferente beleza.
Ao longe, já avistava um longo banco de madeira sobre a calçada. As portas de vermelho vivo se abriam ao menor sinal de chegada da equipe. O carro que antes parava à distância, agora já não assustava “Josenildo.” Na sala, sob a imagem do coração de Maria, uma fita branca dava as boas vindas.
Nos dados de internação psiquiátrica na Atenção Básica, há algum tempo, Josenildo era um número a menos. No dia a dia, era alguém que lhe fazia pensar sobre loucura, saúde e, sobretudo, sobre a própria existência.
Na primeira vez que o viu, morava no galinheiro no quintal da casa. Encolhia-se junto às galinhas ao ouvir o barulho dos carros e gritava amedrontado sempre que alguém tentava se aproximar.
Passaram-se dois anos de visitas frequentes da equipe, conversas com a família, distanciamentos e reaproximações. O quarto de Josenildo fora rearrumado e novamente ocupado. Hoje, ele fora convencido a oferecer-lhe as faces para livrar-se da enorme barba que há tanto tempo escondia-lhe o rosto e acumulava as impurezas que lhe feriam a pele. Desejara, mais uma vez, ter aprendido a fazer coisas mais triviais. Depois de perceber que creme e aparelho de barbear se enroscavam grudando nos pelos espessos, finalmente, embora com certa desconfiança, conseguira a permissão dele para que o barbeiro da cidade o fizesse. Como poderia saber que um condicionador de cabelos funcionaria melhor que um creme de barbear?
O cheiro de café preparado no fogão à lenha invadia a sala…
Enquanto o rosto de Josenildo era lentamente descoberto, imaginava o jovem de antes descrito pela família. Imaginou o tempo em que sorria, conversava e tocava o violão que repousava dependurado no armador no canto da sala.
Fixou-se nos olhos ternos da mãe sobre o rosto do filho e sentiu uma mansa alegria. Eram dois sois inundados de rios. Terras sertanejas recebendo chuva. Pensava no quanto ainda havia para ser percebido, olhado, refletido e vivido naquele lugar…
*Post dedicado a uma pessoa querida que generosamente compartilha suas histórias e orgulha-se de atuar como médica da ESF no sertão nordestino. “Sua ternura não ficou na estrada, não ficou no tempo presa na poeira”
Por Arthur Fernandes
Nossa!
Muito envolvente essa postagem! Não tem como não se apaixonar, imaginando todos os cenários, sensações, cheiros…
O sertão, o povo simples, a natureza resistente parecem nos puxar para perto, para mergulharmos nesse pequeno-grande pedaço de mundo, entendermos mais um pouco deles, mas principalmente de nós mesmos. Uma série de viagens diárias ao nosso interior a cada paragem, a cada visita, cada atendimento.
Saúde mental e atenção primária, como sempre, me (en)cantando.
Muito obrigado por compartilhar essa história, Jacqueline. Não deixe de nos emocionar! 😀
PS.: você deveria considerar escrever livros! Hehehehe
AbraSUS!