Espaço de Convivência Portal das Artes: Costurando novas subjetividades

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Hoje quero contar para vocês sobre meu encontro com uma das oficinas que acontece no Espaço de Convivência Portal das Artes,  que fica no Distrito Sul da cidade de Campinas.

O Espaço de Convivência Portal das Artes, no momento de minha permanência por lá, contava com 01 coordenadora formal, 01 músico e 01 auxiliar administrativa. Além dessas 03 pessoas, alguns profissionais da rede e voluntários estabeleciam parcerias com este Centro de Convivência e realizavam algumas horas de sua jornada de trabalho por lá. 

Pude observar que o número insuficiente de pessoas contratadas para estar permanentemente ali produzia por um lado um laço forte entre esses profissionais, ao mesmo tempo em que gerava algumas sobrecargas e períodos de esvaziamento do serviço. Uma das formas criativamente encontradas pela equipe para dinamizar sua potência, foi a criação de uma parceria efetiva com algumas pessoas da comunidade, e nessa direção, o trabalho voluntário neste espaço pode ser explorado como um elo forte entre o serviço e o território, como um canal que gera nos usuários um sentimento de verdadeiro pertencimento em relação à aquele espaço. E é uma dessas experiências que eu pretendo narrar.

No segundo dia em que eu estava no Portal das Artes, duas oficinas aconteciam ao mesmo tempo: uma oficina de costura e uma oficina de música. A primeira coordenada por Dona M. uma voluntária e a segunda coordenada pelo músico contratado formalmente.

A oficina de música acontecia na área aberta do CECO e seu som podia ser ouvido na sala onde acontecia a oficina de costura, bem como pelas casas próximas ao CECO. Nesse dia, o combinado era a realização de uma roda de samba com diversos instrumentos: violão, pandeiro, cavaquinho, percussão, chocalhos e triângulos. Esse grupo contava com 08 participantes com diferentes idades, gêneros e diversas  limitações, sendo que dois deles tinham comprometimentos mentais evidentes e 01 usuário com limitações neurológicas significativas. Esse usuário estava sendo acompanhado por sua mãe, que ali também caía no samba estabelecendo com o filho uma outra relação de cuidado, tentando descobrir com ele possibilidades de movimento no manuseio dos instrumentos apesar de suas limitações físicas, ao mesmo tempo em que cuidava de si.

O coordenador intermediava essas relações, seja por meio da palavra, seja por meio da musicalidade.

No mesmo dia e horários, a voluntária Dona M. conduzia a oficina de costura. Naquele dia ela chegou mais cedo para o grupo do que os demais participantes; preparou o espaço, demonstrando uma preocupação e responsabilização em relação à atividade que ali aconteceria.

Ela demostrava muita liberdade ali, tanto para com o espaço quanto para com as pessoas. Conhecia onde ficava cada material, tinha uma chave para ela de lá e às vezes era ela quem se responsabilizava por fechar a casa ou abri-la fora do horário de expediente dos trabalhadores quando necessário, por exemplo, para um uso da comunidade previamente combinado.

Naquela manhã, a oficina de costura contou com a participação de 09 mulheres de meia idade, incluindo uma freira, que apesar do uso do hábito, podia ali ocupar um outro papel, fazer novas costuras com pessoas de outras religiões, outras crenças e outros valores, uma freira que se permitia deixar dançar discretamente seus pés naquele espaço invadido pelo samba do grupo ao lado. Imagino que possibilidades muito diferentes de produção de subjetividades operam dentro de um convento e dentro de um Centro de Convivência.

As outras mulheres expressavam nas escolhas de suas roupas, em seu modo de ouvir, falar e realizar a atividade, suas diferenças e similaridades. Ficava claro que mulheres de meia idade optam por costurar por motivos mais diferenciados entre si, algumas como fonte de renda, outras como distração, outras como “terapia” (sic), etc… No entanto, D. Maria, as reunia ali, em torno de um objetivo comum: aprender ou aprimorar suas habilidades em costurar juntas.

D. M era a principal responsável pela condução da atividade, sem supervisão de nenhum trabalhador. Os profissionais do Espaço Portal das Artes entendem que isso não é um abandono da voluntária, mas sim uma aposta em sua autonomia e legitimação de seu saber em relação à atividade em que ela mesma se propôs a realizar. Por outro lado, há um reconhecimento de que existe momentos em que as situações de maior dificuldade relacional emergem no grupo e quando a D. M sente que é necessário, a coordenadora do Portal, que é também psicóloga, se dispõe e estar junto a ela, dando suporte ou ajudando na condução de algumas situações.

Como um exemplo de uma situação como essa, D. M conta que, certa vez, uma das costureiras estava “em crise” e ela sentiu muito medo de deixar a tesoura na mão da usuária “daquele jeito”. Ela referiu que não sabia muito bem o que fazer, então a coordenadora a ajudou.

Dona M, o tempo todo chamava aquele encontro de “aula de costura”; as mulheres conversavam sobre assuntos diversos o tempo todo. A relação de Dona M. com as pessoas era uma relação de troca, de ensino e aprendizagem, sem ambições terapêuticas. Mas era perceptível que aquele espaço tinha algumas sutilezas que extrapolam a esfera da aquisição de habilidades, e que se expressavam em alguns elementos que recriavam uma relação “professor-aluno”, onde cada elemento se misturava: Trocavam papéis, se doavam voluntariamente. Ao mesmo tempo, embora não houvesse a presença de um saber-terapeuta constantemente, naquele espaço se produziam efeitos terapêuticos, no sentido de se produzir “cuidado com”.

Ali, não se tratava apenas de um trabalho caridoso em que uma mulher doava seu tempo e suas habilidades para outras mulheres, tratava-se de uma troca de cuidados, de escuta, de técnicas, de saberes, de linhas, de cores… Costuravam-se vestidos, bolsas, saias, mas também se teciam novas relações, alinhavavam-se novos afetos e amizades.

“Eu queria que a mão do amor,
um dia traça-se os fios dos nossos destinos,
bordadeira fazendo tricô
Em cada ponto que desse amarrasse a dor
Como quem faz um crochê, uma renda um filó,
Unisse as pontas do nosso querer e desse um nó”

(Roberta Sá)