Saúde Indígena em pauta
Segundo dados do Censo 2010, no Brasil vivem mais de 800 mil índios. Eles representam 0,4% da população e estão distribuídos entre 683 terras indígenas e algumas áreas urbanas. Eles correspondem cerca de 300 etnias, com aproximadamente 200 línguas distintas, detentores de sistemas sociopolíticos e culturais próprios.
Em termos de saúde pública, os povos indígenas continuam esquecidos, tanto por uma perspectiva de política como de inserção em sistema de informação. Os agentes de saúde enfrentam muitas dificuldades para consolidar a atenção básica primária nos territórios indígenas. Esses desafios englobam, entre tantas coisas, logística, aspectos culturais e falta de profissionais.
Para contextualizar a saúde indígena, a equipe do Lappis entrevistou a médica sanitarista e professora-pesquisadora na Escola Politécnica Joaquim Venâncio/Fiocruz, Ana Lucia Pontes. No bate-papo, a pesquisadora abordou o Subsistema de Atenção à Saúde, formação em saúde indígena, as atividades da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena/5º CNSI, entre outros assuntos.
Lappis – Como o SUS se articula com o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena?
O Subsistema é um componente do SUS. A Lei no. 9836/99, conhecida como Lei Arouca e que institui o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, na verdade, acrescenta o Capítulo V ao Título II da Lei 8.080. A política atual da saúde indígena foi fruto de uma mobilização de diversos atores e instituições, indígenas e indigenistas, no mesmo período da reforma sanitária brasileira e com interlocuções com a mesma. Os princípios e diretrizes que vão conformar o SUS, também integram a política de saúde indígena.
Em termos de organização da atenção, a articulação se dá da seguinte forma: o Subsistema de Saúde Indígena oferta ações de atenção primaria à saúde, por meio de equipes multidisciplinares de saúde indígena nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas/DSEI; visando a integralidade da atenção, os usuários indígenas são referenciados para o restante da rede SUS para atenção secundária e terciária, que não estão disponíveis nos DSEI, tendo a Casa de Saúde do Índio/CASAI como apoio. Existem diversos incentivos e estratégias para garantir essa relação com os serviços ofertados pelas redes municipais, estaduais e federais, entretanto, tem sido um grande desafio.
A questão da garantia da atenção secundária e terciária, e o acesso a medicamentos, foram uma das principais pautas da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, realizada agora em dezembro em Brasília. Os debates apontaram que essa articulação entre o Subsistema e o restante da rede SUS encontra diversos problemas e desafios ainda a serem superados. Os representantes indígenas relatam diversas dificuldades no acesso aos serviços de saúde do restante da rede SUS, como demora nos atendimentos, falta de medicamentos, discriminação, falta de sensibilidade cultural nos serviços (pelas diferenças linguísticas, de alimentação, de compreensão do processo saúde-doença-cuidado), entre outros.
Lappis – O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena está conseguindo assegurar a prestação plenae qualificada da atenção primária à saúde?
O Subsistema é uma conquista e um avanço para a saúde indígena, pois antes de 1999 não existia uma política de saúde indígena no país. Com a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas houve uma significativa expansão das ações de atenção primária a saúde, com destaque para a atuação dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) de forma permanente e constante nas aldeias. Entretanto, a atuação do restante dos profissionais da equipe multiprofissional, como técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos e odontólogos, ainda ocorre de maneira irregular. Seja pela alta rotatividade desses profissionais, seja pelas dificuldades de deslocamento nos Distritos, ou seja, pelo quantitativo insuficiente desses profissionais. Essa irregularidade, associada a outros problemas como as precárias condições de trabalho que as equipes encontram e falta de qualificação profissional, dificultam a implantação de um modelo de atenção primária, de modo que observamos que ainda se reproduz um modelo curativista e focado na identificação e tratamento de doenças.
Temos ainda uma grande dificuldade de avaliar a qualidade da atenção. Mas dados de pesquisas, como o I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, concluído em 2010, mostram que existe muito ainda no que se avançar na organização da atenção primária para lidar com a alta prevalência das doenças infecciosas e parasitárias, a rápida emergência das doenças crônicas não transmissíveis, e a elevada prevalência de desnutrição e anemias, principalmente em crianças e mulheres em idade fértil.
Outra importante característica, que ainda é um desafio, é a atenção diferenciada, ou seja, como desenvolver uma atenção primária que reconheça o pluralismo médico e a diversidade das sociedades indígenas. Isso significa lidar com o desafio de organizar complicadas logísticas de deslocamento e manutenção das equipes e usuários indígenas em diferentes contextos, mas principalmente em como respeitar e reconhecer os conhecimentos e práticas de saúde dos povos indígenas, que são específicos por etnia (e no Brasil são cerca de 305). Os povos indígenas possuem complexas formas de compreender o processo saúde-doença e diversos sistemas terapêuticos, que são desconhecidos pela maioria dos profissionais de saúde. Além disso, há que se considerar a visão de mundo e a forma de viver de cada povo, que vão influenciar o processo de cuidado. Tudo isso implica em lidar na relação profissional de saúde – usuário indígena com as históricas diferenças, conflitos e dificuldades da relação interétnica no Brasil.
Ainda referente ao acesso, que ainda não está resolvido, é com relação à população indígena em área urbana, estimada em torno de 300 mil indígenas. Eles acabam ficando fora do Subsistema e acessando diretamente os serviços da rede SUS. Existe a expectativa da organização de uma política de saúde direcionada para essa população, mas que ainda não foi apresentada.
Lappis – Quais são as políticas e experiências de formação em saúde indígena?
A formação de profissionais para trabalharem na saúde indígena encontra vários desafios. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, de 2002, preconiza que os profissionais de saúde devem receber uma qualificação para trabalhar no contexto intercultural, entretanto, o que se observa é que isso não tem ocorrido. Existem experiências nesse sentido, mas não ocorrem de maneira sistemática e regular nos Distritos, e a alta rotatividade dos profissionais, também prejudica esse desenvolvimento. Essa carência de formação dos profissionais das equipes multidisciplinares em aspectos socioculturais dos povos indígenas é apontado como um problema para a melhoria da qualidade da atenção e implementação da atenção diferenciada. Os profissionais dos DSEI também referem que encontram poucas ofertas de cursos de pós-graduação para a atuação na saúde indígena, muitas dificuldades para continuarem seus estudos (seja em cursos presenciais ou à distância) e poucos estímulos para isso.
Também precisamos destacar que poucos cursos de nível técnico ou superior em saúde oferecem aos estudantes a oportunidade de conhecer e aprender sobre esse subsistema ou a realidade dos povos indígenas.
No geral, as experiências formativas dos Agentes indígenas de saúde são caracterizadas como irregulares, intermitentes, com períodos de ausência, sem certificação e sem articulação com o processo de escolarização. A Sesai, que assumiu a saúde indígena em 2010, agora na 5ª CNSI apresentou uma proposta de qualificação profissional para AIS e AISAN, com 500 hs de carga horária, e que será realizada em parceria com as ETSUS, e previsão de início em junho de 2014. Existe muita necessidade e expectativa quanto a formação profissional dos AIS, pois desde a 2ª CNSI existe a demanda do seu reconhecimento profissional e profissionalização, mas que ainda não foi plenamente desenvolvida. Nessa 5º CNSI também foi aprovada uma moção de apoio à regulamentação e profissionalização dos AIS e AISAN buscando fortalecer esse processo.
Lappis – Quais são os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde que trabalham com a saúde indígena?
Existem muitos desafios para esses profissionais, e acredito que ainda existe muito a ser feito. A partir da minha vivência no Alto Rio Negro e do meu contato com profissionais de outras regiões, destacarei alguns aspectos. Em termos quantitativos, parece que se tem conseguido ampliar significantemente o número de enfermeiros, técnicos de enfermagem e AIS, mas ainda se fala de uma defasagem em relação às necessidades. A modalidade de contrato precário, temporário de um ano feito por diferentes ONGs, realizado até 2011, mudou e agora eles são contratados com processo seletivo e via CLT. Existe um debate controverso sobre o concurso público na saúde indígena, pois existem muitas dúvidas sobre a permanência dos profissionais concursados nas comunidades e nos Distritos, e sobre as cotas para indígenas. Na 5ª CNSI existiam diferentes propostas para debate, mas me pareceu que ainda existem muitas dúvidas e inseguranças, de modo que não tenho clareza como será resolvida a questão, apesar de o Ministério Público Federal estar pressionando a Sesai para realizar brevemente o concurso.
Atualmente, na região que atuo, ao ingressarem, os profissionais possuem pouco preparo para atuar no contexto indígena. Existem poucas oportunidades para eles aprenderem sobre a cultura e a região. Considero que também existem poucas diretrizes sobre o que seria a atenção diferenciada, então, os profissionais também tem pouca clareza sobre o que seria essa especificidade cultural da atenção. Esse desconhecimento sobre as características socioculturais sobre os povos indígenas, associada a uma discriminação social existente na nossa sociedade e a falta de preparo dos profissionais, leva a alguns conflitos e choque entre profissionais de saúde e usuários indígenas. No geral, me parece que o trabalho desenvolvido nas aldeias difere muito pouco do que seria realizado em área urbana.
Outro problema, é que devido às dificuldades geográficas e logísticas, a permanência dos profissionais em área ainda é irregular, e a isso, se soma um rodízio de profissionais por pólos-base, seja por demissão ou mudanças internas. Essa situação prejudica: o vínculo dos profissionais com as comunidades, a continuidade do cuidado e o desenvolvimento de ações de promoção e prevenção em saúde. Esse quadro complica, por exemplo, o desenvolvimento adequado de ações de puericultura, acompanhamento de desnutridos, pré-natal e tratamento de doenças crônicas não transmissíveis, entre outros.
Preciso também destacar as condições de trabalho na saúde indígena, que são alarmantes. A estrutura dos pólo-base são extremamente precárias, não existe manutenção regular, de modo que os profissionais acabam, por eles próprios, realizando pequenos consertos. Isso, por vezes, significa que os profissionais ficam 30 dias consecutivos alojados em locais com condições insalubres e precárias. Além disso, existe a falta de suprimentos, seja de gasolina e de transporte para deslocamentos, seja de medicamentos e equipamentos para realização das ações, entre outros. Assim, considero que os profissionais passam por um sofrimento significativo, que vai repercutir no trabalho que executam.
Lappis – Na mesa de abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, o ministro da Saúde anunciou que 47 profissionais do Programa Mais Médicos, beneficiando cerca de 200 mil indígenas. O que a chegada desses profissionais representa?
A falta de médico nas equipes multidisciplinares de saúde indígena é uma realidade em vários distritos. Na região do Alto Rio Negro, nos últimos seis anos, poucos médicos ficaram mais de um ano, e por poucos períodos houveram mais de 1 ou 2 médicos para atenderem aos cerca de 25 mil indígenas, numa região de grandes distancias e com lugares de difícil acesso. Esse número de profissionais do Programa Mais Médicos, com certeza não vai suprir toda a demanda dos 34 Distritos, mas espero que sua distribuição e adequada orientação permita uma organização de algumas equipes. O trabalho do médico na saúde indígena, por vezes, ainda é muito disperso em diferentes demandas, de modo que são mais solicitados para demandas de urgência e emergência e irregularmente atuam em ações da atenção primária, propriamente. Espero que as equipes que vão contar com esses médicos por um período de três anos, de fato, construam um processo de trabalho em equipe na atenção primária.
Lappis – Como a senhora avalia a 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena?
Considero que a realização da 5ª CNSI é um fato importante, principalmente se considerarmos que a 4ª CNSI ocorreu em 2005. Essa conferência serviu para percebermos que a situação e os desafios da saúde indígena são muito complexos e que existem muitas visões diferentes sobre as soluções. Fez falta no debate uma apresentação sobre a situação de saúde da população indígena, com dados atuais, e um balanço que refletisse sobre as propostas da 4a CNSI e os noves mecanismos de monitoramento e avaliação das propostas da 5ª CNSI. De modo geral, observamos que nas últimas conferências muitas propostas são repetidas, pois não são implementadas.
O relatório consolidado, que seria votado, era extenso, com muitas propostas repetidas, e diante da programação intensa havia pouco tempo para leitura prévia do mesmo. Assim, considero que o tempo reservado para a leitura e discussão das propostas nos grupos de trabalho foi espremido. As mesas redondas que teriam o potencial de ajudar no debate das propostas nem sempre dialogaram com as mesmas. Ao final, a maior parte das propostas foi aprovada nos grupos de trabalhos e não foram para debate na plenária.
Algumas questões tiveram propostas discordantes aprovadas, como o concurso público; e o acesso aos serviços de atenção secundária e terciária. Mas considero que apesar do relatório consolidado das conferências distritais ser extenso, com cerca de 700 propostas, muito coisa ficou de fora e talvez justifique as 63 moções aprovadas (número muito superior dos relatórios das conferências anteriores).
Fotos: Abrasco, Facebook da Ana Lucia Pontes e Agência Brasil
Por kwara
Parabenizo a equipe do Lappis que parece honrar o papel que as universidades precisam exercer diante de situações tão graves quanto a dos povos indígenas. As questões colocadas à Dra. Ana Lucia Pontes são muito relevantes e pertinentes. Também as questões denunciadas nas respostas da Dra Ana Pontes expõem a gravidade da situação e o descompromisso de parte do atual governo com os povos indígenas. A questão da terra é gravíssima, mas a questão da saúde é de igual ordem de calamidade!
Que essas palavras ardam nos ouvidos daqueles que poderiam resolver essa situação e não a resolvem!
kwara!