Filmes de Guerra como Cultura de Paz: Formas e Formas de se Morrer
O cinema faz parte do cotidiano da vida da maioria de nós, em particular, o cinema norteamericano. Os filmes comparecem mesmo que ninguém vá ao cinema. Temos a TV, temos também a publicidade, temos metáforas que a semelhança de "A Rosa Púrpura do Cairo" de Wood Alen, abandonam. as telas e adentram em nossas vidas na forma de diretivas ou sinalizações práticas de comportamentos e hábitos.
Particularmente, admiro o cinema americano e rotulo como preconceituosa a crítica que opõe um cinema de arte frente a um cinema comercial, até porque, numa sociedade capitalista, o cinema é também mercadoria e, desta sina, não escapa nem um bom filme de Ingmar Bergman. Prefiro dizer que existem filmes ruins e filmes bons. Óbvio dizer que o "bom" e o "ruim" são arbítrios com todos os riscos decorrentes.
Outro dia depois de rever um velho western – "Matar ou Morrer" com Gary Cooper e uma belíssima Grace Kelly em início de carreira – fiquei me perguntando como pensaríamos nossa morte se o cinema não existisse. A morte quase sempre foi mostrada no cinema como um evento doloroso, outras vezes heróico, pincelada com sentidos práticos (ela deve existir para punir o vilão e/ou consagrar miticamente o heroi etc). Mas até o início dos anos 60, o público era poupado de detalhes mais realistas como sangue ou visões anatômicas de cortes, fraturas e mutilações.
Hoje, filmes que abusam de cenografias mórbidas tem consultores na área médica para buscarem realismo quando, por exemplo, a carótida é cortada ou uma bala atravessa a femural. Nossa imaginação é absolutamente desnecessária, basta ver a imagem e sentir todo o horror dela decorrente. Mas, de fato, aprendemos alguma coisa quando vemos filmes como "Jogos Mortais" ou o eterno acumular de frios assassinatos em "Sexta Feira 13"? Do meu ponto de vista, filmes com esta estética explícita da morte são meramente catárticos. Servem para que nós, curiosamente, possamos ver a morte protegidos pela barreira da arte, são expressões do exibicionismo e espetacularização de uma sociedade que transformou a morte em tabu, em evento médico e higiênico. Os filmes com este tipo de conteúdo são janelas entreabertas para desfrutarmos de uma certa busca de olhar a barbárie sem necessariamente exerce-la, mas podendo, de certo modo, aprecia-la esteticamente e ainda sermos julgados como pessoas "normais".
Mas existem filmes mais "pedagógicos". Por exemplo, filmes de ação transformam a morte em problemas práticos, resultado da perícia do herói em atirar e magicamente desviar-se das balas. Filmes e video-games são extensões um do outro. Bruce Willis nos seus "Duro de Matar" é na verdade um assassino que representa a platéia e sua sanha de combater o mal sem morrer durante a tentativa, filmes que seguem as trajetórias já inciadas por Clint Eastwood ou Charles Bronson. Como "matadores" que se identificam com seus personagens, somos estimulados à indiferença com quem é assassinado sistematicamente na tela, afinal, o fato de serem maus rouba deles a condição de humanidade.
Essa parece ser a chave da questão. Os filmes de ação para serem assimilados e consumidos devem retirar dos mortos toda e qualquer identidade que expresse sua humanidade, só assim a morte pode ser aceita como se houvéssemos matado um cão raivoso. Para isso, o conhecimento bélico e uma boa pontaria são atributos essenciais…tiros e mais tiros…explosões e corpos decepados para o delírio da platéia.
Mas existem outras situações em que a morte violenta se expressa numa estética decididamente realista que vai além da caracterização de ferimentos. Falo aqui de alguns filmes de guerra (uma minoria infelizmente) como "Platon", "O Resgate do Soldado Ryan", "Johnny Vai a Guerra", "Pecados de Guerra", "Nascido para Matar" , "Nascido a 4 de Julho" ou "Gloria Feita de Sangue". Evidentemente, a análise de todos estes filmes comportaria um livro. Entretanto, tomemos como exemplo o filme "O Resgate do Soldado Ryan" de Steven Spilberg.
Não entrarei numa discussão mais prolongada sobre história e roteiro. Queria destacar apenas como a morte comparece no filme. Spilberg não quer poupar o público. Mas, diferente do que estamos acostumados a ver, ele nos traz também todo o impacto emocional que a morte violenta e dolorosa provoca. Desde as imagens iniciais quando a morte é mostrada como evento absolutamente aleatório (como o soldado que escapa da morte porque a bala resvala no seu capacete para no segundo seguinte ser alvejado e morto), ficamos a perguntar qual o sentido de todo aquele sofrimento. Nos irmanamos com o desespero do soldado que procura pelo braço que doi decepado pela explosão ou com aquele que urra de dor enquanto tenta impedir que as visceras escapem do ventre. O recado está dado. Isso não é uma brnicadeira, as pessoas morrem de forma franca e honesta. Numa guerra, a morte se mostra dolorosa e intensa.
Mais pela metade do filme, o oficial médico que está no pelotão que procura o Soldado Ryan é alvejado no ventre. Como médico, ele sabe todas as decorrências técnicas da sua lesão na medida em que é informado pelos companheiros sobre suas caracterísiticas. Desesperado, chora e grita pela mãe. O que aconteceria se esta forma de mostrar a morte fosse a usual no cinema? Será que as pessoas se mobilizariam com tanta facilidade para lutarem numa guerra? Provocativamente eu diria que filmes aparente belicistas como "O Resgate do Soldado Ryan" são na verdade importantes recursos para se construir uma cultura de paz ao mostrarem que por trás dos rostos de quem morre existem atributos que caracterizam cada individualidade perdida como essencialmente humana. Fica a sinalização de que a morte com dor e sofrimento é DESUMANA e nada pode justificar que ela aconteça dessa forma.
Por Annatália Meneses de Amorim Gomes
Querido Erasmo,
Suas reflexões nos levam a pensar sobre a humanidade da morte e do morrer. A individualidade na morte nos chama para vermos como esta individualidade se expressa em vida. A morte com dor e sofrimento é constante em nosso dia a dia. Momentos como esse poderiam ser melhor vividos no cotidiano de nossas práticas. Familias e pacientes vivem a dura realidade ou a "crueldade" referidas por alguns sobre nossas ações quando não somos capazes de tornar este momento menos doloroso e aumentamos o sofrimento já tão difícil de ser suportado por quem está nesta passagem ou por aqueles que acompanham seus entes queridos.
Beijos
Annatália