REFLEXÕES DE BALCÃO: MEDICAMENTO (NÃO) É MERCADORIA.

15 votos

Hoje vivi uma experiência no trabalho que me fez refletir sobre as políticas públicas e a construção e desconstrução social de um certo modo de produzir saúde.

Trabalho em um Centro de Saúde da cidade de Campinas-SP, sou farmacêutica e grande parte do meu tempo de trabalho é dedicado à dispensação de medicamentos. Tenho tentado transformar este  curto contato, este pequeno espaço de tempo com o usuári@ em algum cuidado. Hoje, atendi uma adolescente de 16 anos, ela era a 17ª na fila de 30 pessoas que aguardava o atendimento. Essa mulher estava com uma infecção vaginal e há uma semana guardava consigo a prescrição do medicamento, um antibiótico de uso vaginal, pois estava com medo de usá-lo. Não sabia como fazer. Começamos a conversar e logo uma amiga dela se juntou. Elas tinham muitas dúvidas sobre o medicamento, sobre a sexualidade e sobre o auto cuidado. Conversávamos. Em um certo momento, daqueles 7 minutos no atendimento, uma usuária que aguardava na fila, reclamou. Reclamou alto que eu estava "conversando" e não "entregava" os medicamentos. Ela gritou, xingou e se descontrolou por fim. Foi levada a uma sala por outra trabalhadora e acolhida. Ela está em sofrimento psíquico e recebe cuidados da equipe no Centro de Saúde. 

Fiquei deveras chateada e triste com esta situação. Mas estive refletindo sobre lugar da farmácia e do medicamento no serviço de saúde.

Que objeto é esse, o medicamento, que se parece mais com uma mercadoria? 

O medicamento é na nossa sociedade um bem de consumo. No cotidiano, a drogaria se mistura nas ruas e nos shoppings a lojas de roupas, sapatos e perfumes. Os medicamentos são oferecidos em bacias, com promoções pague 2 leve 3. Compramos medicamentos como compramos pão. 

Nossas políticas públicas tem promovido um acesso diferente ao medicamento? Penso que não. Atualmente o financiamento da Assistência Farmacêutica mal cobre os custos com os medicamentos  e não há de fato um investimento em recursos humanos e infra-estrutura. Promover o acesso a medicamentos essenciais ainda é um desafio para grande parte dos municípios e não raro os usuários precisam recorrer a compra para garantir seus tratamentos. As farmácias possuem estrutura precária e concretamente muitas vezes grades e vidros bloqueiam um contato direto entre o profissional que atende na farmácia e o usuário do medicamento. A entrega é rápida, impessoal e focada no medicamento. 

É sempre assim? Não, é claro que não. Há experiências, construções e desconstruções por todos os lados. O incômodo que me surge e a pergunta que me faço é, o quanto estamos realmente refletindo sobre estes processos e o quanto as políticas públicas se preocupam em desconstruir este modelo. Oferecemos práticas integrativas, múltiplas terapias, mas ele está lá, a ferramenta, a intervenção desejada, a solução do medicamento. Solução que se torna problema, solução que se torna milagre. 

Transformar a forma como promovemos o acesso aos medicamentos é essencial para mudar a relação que estabelecemos com esta importante e essencial ferramenta do cuidado à saúde. É preciso tornar a assistência farmacêutica uma oferta de cuidado e não de uma mercadoria. Incluir a farmácia e seus profissionais no cuidado, incluir cuidado no acesso aos medicamentos. Parece simples, mas não é. Isso exige uma mudança de política pública e de cultura.