Os atos comunicativos eternizados em bancos de memória.
As mensagens em aplicativos como o WhatsApp seguem um curso triplo:
– Saem de sua tela, depois que você digita. Aparece o ícone de um relógio se o tráfego de dados estiver lento. Ou, então, vão direto para o segundo pulo.
– Aparece um “v” quando a mensagem chega ao servidor do aplicativo em alguma fazenda de servidores num lugar distante de nosso planeta, geralmente muito frio, onde o dado fica armazenado para posterior tratamento estatístico, ou sabe-se lá que outro uso, ainda desconhecido, possa vir a ter. Esse armazenamento é o ativo financeiro mais importante do WhatsApp. Por isso o Facebook pagou 21,9 bilhões de dólares pelo aplicativo.
– Finalmente, aparecem dois “vv”, significando que o aparelho do destinatário recebeu a mensagem. Os dois símbolos ficam na cor azul quando o receptor visualizar a mensagem.
Além disso, você é informado da última vez que seu contato ficou online ou se ele está online. Uma ferramenta muito útil para informar o interesse de seu, ou seus, interlocutores.
O tipo de confiança que implica enviar uma mensagem de texto, imagem ou filme para alguém certamente tem um nível. Mas é bem baixo. Afinal, assumimos o risco e aceitamos que nossas mensagens, uma vez enviadas, podem ser arquivadas para sempre, como um registro de nascimento, em um cartório – o servidor – ou num arquivo pessoal – a memória do dispositivo do destinatário.
Agimos despreocupadamente. Parece que Smartfones sempre existiram e, francamente, agimos como se fosse muito difícil viver sem estar sempre se comunicando.
Mas uma vez realizado o ato de enviar uma mensagem, ele sempre pode ser recuperado. E, integralmente, sem estar sujeito a subjetividade e imprecisão da memória, como acontece com as coisas que dizemos uns aos outros pessoalmente.
Não importa quem sejam (exibicionistas, tímidos , leais ou volúveis) receptores e emissores estão mais engajados no ato de comunicar sentimentos, emoções e opiniões do que em privacidade.
Todo sofrimento implicado no vazamento de dados pessoais em interações por aplicativos do gênero é real e devastador. Há registros de suicídios motivados por violação de privacidade de mensagens e a-mails.
No caso de celebridades os dados são violados por hackers. Pessoas comuns costumam ter sua privacidade violada por ex-namorados(as) ou mesmo, amigos da onça. Há um termo cunhado para o vazamento de imagens íntimas por ex-namorados: “revenge porn”. A popularidade desse tipo de arquivos é maior do que grande e caras produções da industria pornográfica.
Mas nada disso é suficiente para impedir que troquemos mensagens com opiniões, sentimentos, imagens e filmes de cunho íntimo, pessoal, pornográfico e até obsceno. Não é incomum compartilhar mensagens com conteúdo como tortura, assassinatos, sofrimento e escatologia nauseante.
O que isso indica é que a produção de sentido é solidária. Nada que pensamos, nem mesmo o que pensamos sobre nós mesmos, está fundado em uma suposta plenipotência unilateral e transparência comunicativa .
Sem o compartilhamento de nossos estados de espírito, o sentimento não pode ser vivenciado da forma que nos acostumamos a chamar de humana. Os valores são reflexos do reflexo de infindáveis trocas de mensagens. Um jogo de espelhos onde a imagem original não existe em si mesma. Uma opinião se forma em oposição e/ou, apoio a outras opiniões.
Sem o encontro, a modulação de energia singularizada na cristalização, única e genérica, de um modo de ser, é vazia de sentido e significado. Sabemos disso. É esse conhecimento íntimo que nos leva a monitorar as curtidas, visualizações e comentários que nossa existência compartilhada desencadeia.
Tenho interlocutores, logo existo.
Por deboraligieri
Marco querido.
Adoro seus textos! Justamente porque me dão trabalho, porque me obrigam a parar para refletir sobre o que acabei de ler. Na verdade, costumo fazer isso em abundância (parar para pensar sobre a vida e sobre as relações que estabelecemos com ela e com as pessoas que estão, propositadamente ou não, em nossa vida), mas percebo que o ritmo de vida atual, com essa enxurrada de informações que muitas vezes nos sufocam, tende a tornar cada vez mais raros esses momentos tão necessários de reflexão. O seu texto nos fala justamente disso, o quanto naturalizamos a ausência de reflexão sobre a vida em prol da manutenção de um diálogo que nem sempre diz alguma coisa.
E tenho ouvido muito a invocação (que nesse seu texto vejo mais como uma provocação) de Descartes, justamente num momento em que poder parar para pensar é tão difícil quanto ter tempo para encontrar com amigxs queridxs. Na sua provocação, o "penso" tem o sentido daquilo que aparece de imediato no cérebro da pessoa, uma ideia irrefletida, e que na maior parte das vezes mereceria ser melhor entendida antes de comunicada (estaria eu fazendo uma comunicação irrefletida nesse momento?).
Também no webinário sobre educação popular, José Ivo nos provoca ao questionar "Penso logo existo? E o que eu faço, não tem importância?" (https://redehumanizasus.net/92271-iii-webnario-educacao-popular-e-humanizasus-o-reencantamento-do-cotidiano-em-defesa-da-vida). E aí podemos pensar(!) nessas vinganças digitais, em atos irrefletidos, que nada mais são do que a consequencia lógica de uma vida que se vive sem reflexão. Não refletimos, não vemos xs outrxs, não vemos a nós mesmos.
Nesse aspecto da manutenção dos dados, podemos pensar também sobre o direito ao esquecimento, que após a edição do Enunciado 531 do STJ se tornou um direito da personalidade no Brasil. De certa forma, nossas informações e nossos atos (irrefletidos ou não), apesar de muitas vezes gerarem pouca ou nenhuma reflexão, se tornaram eternamente registrados em um mar de nuvens iformativas. E o que será feito com tudo isso?
Precisamos parar para refletir!
Abraços,
Débora