O dogma da plenipotência e livre arbítrio de indivíduos ou coletividades mostra-se um mito auto benevolente. Gostamos de dividir o mundo entre o que controlamos e o que nos ultrapassa. O fato é que não vivemos num mundo parcial. O real é sempre a totalidade simultânea dos fenômenos. Assim, não podemos estar nem absolutamente, nem parcialmente no controle. Não existe essa realidade fragmentada em nenhum evento observável. O ato de distinguir características é cognitivo. Efeito da linguagem que inventamos e usamos. Conceitos que confundimos com o fundamento e a essência do real.
A perspectiva que nos leva a perceber o mundo como o palco de escolhas ou de submissão as contingencias é apenas isso. Um efeito de perspectiva. Na realidade nossas escolhas se integram numa totalidade superior ao ego onde as forças em jogo tendem ao equilíbrio. O mundo é determinado sempre que olhamos para o passado e indeterminado a cada tentativa projeção ou previsão do futuro. Para um olhar além do humano o passado é como um abismo sem fim e o futuro como uma inclinação infinita. O tempo é uma dimensão espacial com lugares onde criaturas inimagináveis poderiam ir e vir naturalmente. E essa topologia está dada e, simultaneamente, inacessível a cognição humana.
Por exemplo, para nossa percepção a queda do preço do barril do petróleo afeta a Petrobras em um nível em que seus gestores não podem regular unilateralmente. O caso da Argentina (exemplo raro de desenvolvimento reverso) e dos Estados falidos no Oriente Médio, indicam diversas combinações da influência dos elementos internos e externos na ordem econômica e social de qualquer país.
A ilusão alimentada por economistas, empreendedores e dirigentes políticos de que as virtudes podem sobrepor-se a fortuna é um artifício ontológico para se imprimir um significado progressista aos jogos de poder. Ou seja, o mito de que a competência poderia determinar o curso dos eventos a partir somente de virtudes inatas ou adquiridas.
A despeito de que poucos acreditem de fato nessa fábula, a maioria entende que sem uma crença generalizada no livre arbítrio e no mérito não seria possível a manutenção da coesão social. Supõem-se que sem este sentido de conto de fadas não suportaríamos a realidade.
Os humanos, diferentemente de outros animais, tornaram-se exageradamente autoconscientes. Por isso, são viciados em controle e em teleologia. Partimos do pressuposto de que existem causas primeiras e finalidades últimas. Assim, vivemos um surto alucinado de produção e sentido que se presta a justificar, medir e valorar a vida em função de um delírio do bem último.
No caso da política esse bem mítico seria uma espiral de aumento incessante do poder de consumo das populações. Não se pergunta se há recursos disponíveis e tecnologias suficientes para termos acesso a um determinado bem de civilização. O que nos atormenta é se temos ou não crédito para ascender ao padrão de consumo correspondente a uma vida (presume-se que a única) que valeria a pena ser vivida.
A produção de dinheiro novo está relacionada a concessão de crédito. Estamos hipotecando o futuro em nome do consumo no aqui e agora.
No entanto, as premissas do individualismo estão se dissolvendo aceleradamente.
Não é porque eu tenha trabalhado e ganhado dinheiro que posso estar, nesse momento, em um apartamento climatizado, sentado em uma cadeira confortável, bem alimentado, diante do teclado de meu computador digitando essas letras, palavras, frases e parágrafos. As condições concretas pelas quais eu posso viver essa vida não tem tanto a ver com meus méritos.
Posso consumir em uma única lavagem de louças mais água potável de que os bilhões de seres humanos do terceiro mundo dispõem para toda uma semana. Eu não fiz isso. Isso aconteceu comigo. Não é possível que as flutuações da consciência possam manejar o universo dos gestos humanos nos incontáveis atos de viver a vida.
Apenas uma parte importante da vida é dada sob a cortina da atenção consciente. Precisamente de todos os gestos tivessem que ser conscientes a vida não seria viável. Simplesmente a informação necessária para uma existência plenamente consciente não pode estar disponível num lapso te tempo suficiente para orientar uma tomada de decisão consciente.
As populações de hoje vivem pelas mãos sepultadas das incontáveis gerações passadas que lastrearam o desenvolvimento tecnológico. É o passado que constituí o útero confortável em que vivem os cidadãos supernutridos do mundo desenvolvido no século XXI. É isso, precisamente, o que significa uma civilização do conhecimento. Uns vivem pelo trabalho dos outros e uma sociedade é o resultado do legado das gerações passadas.
Se constatamos que não podemos evoluir moralmente, certamente o acúmulo no conhecimento é real e possivelmente não será revertido, como afirma o John Gray. Uma catástrofe cósmica, ou a escassez de recursos energéticos fósseis, são a única ameaça de que venhamos a mergulhar em uma nova idade média. Na imensidão do tempo cósmico isso talvez seja inevitável. Mas, a distopia de um mundo entrando em colapso é tão possível, quanto previsivelmente afastada a cada novo giro da roda do desenvolvimento tecnológico.
Por essa perspectiva, mais realista, podemos ver o anacronismo do debate político e econômico em torno dos méritos e deméritos de estadistas e cidadãos. Pensadores do conservadorismo se rendendo ao uso das novas tecnologias de difusão de suas bandeiras, como o YouTube e redes sociais é um sintoma de que o que se pretende conservar das instituições e tradições humanas já está inevitavelmente perdido.
Olavo de Carvalho, Bolsonaro e outros luminares do conservadorismo divergem até a última virgula em muitas de suas teses. Seu fator de unificação é o amálgama do mal que simboliza a falência e toda a tradição perdida. Lula e o PT passaram a representar o obstáculo à superação da perda das certezas platônicas e aristotélicas. O progresso agora é o retorno a Santo Agostinho e aos gregos. É urgente voltarmos a ser positivistas. Ser conservador hoje já não significa apenas imobilizar-se em tradições confiáveis. Trata-se de um retorno, de uma involução. Uma distopia em que mesmo o novo não passa de uma nova face do mal. O bom e velho sempre mal.
Então, o PT representa esse obstáculo ao movimento lógico e natural de retornarmos aos dogmas e a estabilidade que só a certeza e a verdade podem oferecer a humanos cultos e eruditos. O PT não pode ter errado para os conservadores.
Para eles o PT é o erro. O alvo preciso que um Luke Skywalker (que é forte nos caminhos da filosófica clássica) pode acertar para destruir a gigantesca estrela da morte representada pelo pensamento esquerdista e liberal. Eles querem deter a mudança. Por que não existe mudança. Apenas o jogo eterno do bem e do mal previamente decidido por Deus.
Já os críticos liberais desferem uma crítica cientificista e técnica ao PT, a Dilma e a Lula. Eles foram incompetentes. Eles são lúcidos o suficiente para não caírem no maniqueísmo conservador. Sabem que se Lula for preso, se Dilma sair da presidência, arrastarão para a margem oposta do poder político institucional todos os milhões de pessoas que melhoram de vida durante a prosperidade da década passada.
Ambos, conservadores e liberais, não podem ocultar que as razões contra Lula e Dilma são as mesmas que enredaram FHC e, de um ponto de vista histórico, todos os líderes de coalisões políticas da república brasileira. O jogo dos liberais é mais cínico. O caso é usar os conservadores para deslocar o centro das convicções políticas até sua posição, absorver uma parte do PT, devolver a outra parte a estrema esquerda e, os conservadores, a extrema direita.
À esquerda, por sua vez, se formula um mosaico de críticas que se resumem no fato de que o PT não realizou reformas mais radicais quando a economia ia bem. O auto engano aqui reside no fato de que a hegemonia comandada pelo PT estava desde o início sustentada em promover a superação da miséria sem comprometer os privilégios da elite econômica nacional e internacional.
Se há um “mérito” indiscutível que pode ser atribuído a Lula foi o de ter operado essa sensível mudança em nossa tradição política e econômica: A precária inclusão dos mais pobres no mercado de consumo, sem ruptura com os interesses das elites. Algo que Getúlio Vargas teria feito com a CLT. Impulsionado o desenvolvimento e o capitalismo brasileiro através da ampliação dos direitos sociais dos trabalhadores.