Presunção da inocência
Acredito que buscar o melhor curso possível, como resultado para nossas ações, ao custo que for suportável, consiste no fundamento mais atrativo para a ética. Assim, uma ética da ação está além da norma, da moral, do direito e da tradição. A ética compreende e ultrapassa todas essas noções para aproximar-se mais da justiça, no sentido de ajustamento do viver à vida. É uma mistificação crer que a racionalidade, que embasa a noção corrente de direito, refere-se diretamente ao ideal de justiça.
Penso que o conceito de justiça está distante de ser relacionado a inexorabilidade que decorre como consequência de nossas ações. Não diz respeito a justeza imóvel que liga o encadeamento dos eventos. Justiça é algo que se pretende como transcendente às dimensões de tempo e espaço que conhecemos. É um conceito metafísico porque pretende violar a seta do tempo e fazer o futuro corrigir o passado. É, fundamentalmente, uma crença e uma expectativa humana em relação a suas impressões que derivam em ideias de como deveria ser o real. Não o que virá, o devir, mas o que deveria ser o conjunto atemporal da existência, do mundo e do universo.
Então, por ceticismo e prudência acredito que a justiça nos é inacessível em sua forma plena. Buscar a equação do melhor mundo possível – sem as ilusões de que o mundo visceral dos processos, das investigações, testemunhos e provas possa ser sinônimo dessa colossal esperança humana é, em si mesmo, sinônimo de justiça.
Precisamos colocar a noção de justiça e legalidade em debate. Isso exige maturidade, serenidade, empatia e ética.
Algo que fez eco com a reflexão de Lenio Luiz Streck sobre Ulisses acorrentado ao mastro do navio para não ceder ao canto das sereias e perecer na vastidão abissal do oceano. O canto das sereias consiste no que chamei de colossal esperança humana na justiça. Uma desesperada expectativa transcendente que faz com que as multidões linchem e façam da justiça o espelho de suas opiniões e da sentença, a resolução favorável a seus momentâneos interesses. Ainda que seja uma histeria na busca por ordem e sentido, o sentido e a ordem têm um custo.
As correntes, elas que impedem que Ulisses seja seduzido, segundo Lenio, são uma metáfora perfeita para as leis. As correntes representam a Constituição, as leis e o devido processo legal. Sem elas as retóricas desumanizadoras, a negação simbólica do outro, degeneram em fascismo, massacre e genocídio.
Por isso, a política, a ideia de bem comum, que pertence a todos os seres humanos, inocentes ou culpados, não pode ser eviscerada da democracia e do direito. Em muitas esferas culturais e sociais vigoram discursos de naturalização da barbárie. O direito historicamente não alcança essas esferas sociais. Nosso estado jamais conseguiu cumprir a lei de execuções penais, por exemplo.
Nesses anos conturbados o fenômeno renegado que oprimia os guetos, encontrou expressão na esfera política criou e alterou a ordem do silêncio, e provocou uma onda reacionária. O canto da sereia clama para que todos se atirem ao mar e abandonem, por atalhos e descaminhos, em nome da “justiça” os pilares da democracia.
Podemos pensar os movimentos da história como a soma de intermináveis rupturas. Um tempo que termina para dar início a outro, oposto e contrário. Mas também podemos ampliar o escopo e vermos, ao modo de Bachelard, uma sucessão de instantes solidários que acolhem tanto a repetição quanto a irrupção do novo.
Em momentos como esse, de intensa maré fascista é bom articular uma compreensão do mundo como pura imanência e pura transcendência. Platonismo e antiplatonismo, fatos e ideias articulam-se numa topologia de espaço tempo em que a lógica aristotélica é insuficiente. O princípio da identidade e da não contradição é pobre em termos conceituais para lidar com os fenômenos que derivam da articulação dos fatos. Essa diversidade e pluralidade não permitem reduzir o real a apenas um dos polos. O real é lócus, topos e Cronos (local, espaço e tempo) simultaneamente.
Os acordos em torno do que percebemos como sendo, são cambiantes e no movimento de ir sendo o devir dá uma camada extra dimensional ao real. Como se dá conta Fernando Pessoa, o antigo namorado pode ser adúltero em relação a si mesmo, pois que o que era no tempo do namoro, já não é na época das bodas de prata.
Umberto Eco era fascinado por essas continuidades. Esses encadeamentos (que resistem aos rótulos e classificações) fazem do período chamado de Idade Média um elo na corrente de continuidades e rupturas que gestaram a Modernidade. Assim podemos pensar nos grandes sistemas políticos e econômicos do século XX como continuidades do mega sistema religioso/ filosófico que é o cristianismo.
Podemos pensar que o romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, dá conta de como a obsessão lógica pela verdade transcendente passou a ser o centro da vida de monges copistas e não propriamente a reverência pelo mistério. A biblioteca é o centro da ação, não o altar. O Jogo de detetive medieval é disputado em torno da busca pelo conhecimento. A dialética de equilíbrio instável, entre a Santa Inquisição e a evangelização, vai desencadear a Reforma Protestante, o Renascimento, a modernidade, a pós-modernidade e o que quer que engendremos daqui para adiante.
Num tempo de tantas intolerâncias, permitir que apesar de tudo o que nos separa, ainda e sempre, permanecerá nossa irmandade e igualdade fundamental no destino comum de nossos corpos. Esse é o imperativo que demanda mais ética e menos dogmas, mais humildade e menos arrogância diante da imensidão de tudo que nos envolve. Especialmente permitir a concepção de que somos encadeados em nossas diferenças pelos movimentos que fazem o eterno vir a ser do qual somos uma ínfima parte.
A justiça é sempre uma esperança. O direito é sempre uma práxis. Em nome da esperança podem ser cometidos os mais terríveis crimes. A presunção da inocência é uma forma de dignificar a culpa, num universo onde a maior parte dos determinantes são opacos demais para que se adote o dogma de plenitude pelas vias do livre arbítrio.