O nascimento de uma criança com uma síndrome rara pode provocar alterações no cotidiano familiar fazendo emergir comportamentos e sentimentos ímpares, que traduzem o impacto do enfrentamento com essa nova condição. De acordo com o estudo de Luz, Silva e Demontigny (2015), as famílias se deparam com a necessidade de readaptar os papéis de seus membros, assumirem novas responsabilidades além das habituais quando um filho nasce, e de buscar serviços sociais e de saúde que lhes ofereçam apoio social, financeiro e emocional.
A osteogênese imperfeita (OI), como sugerem Lima e Horovitz (2014), gera imensa dificuldade para as famílias até o aprendizado de como lidar para prestar cuidados da criança com tamanha fragilidade ossea. Tipo de doença rara, caracterizada por fragilidade óssea, fraturas recorrentes com deformidades secundárias, surdez precoce, escleras azuladas e dentinogênese imperfeita. A OI está associada a mutações nos genes do colágeno tipo 1 ou em genes responsáveis pelo processamento da proteína do colágeno tipo 1. Sua frequência varia entre 6-7:100.000 indivíduos e no Brasil estima-se que existam 12.000 indivíduos com tal diagnóstico. O tratamento da OI fundamenta-se na abordagem multidisciplinar – clínico-cirúrgica e reabilitação fisioterápica.
A síndrome stiff skin (SSS), como observam Amorim, Aidé, Durães e Rochael (2017), é doença rara que se apresenta ao nascimento ou infância precoce, caracterizada por pele pétrea, especialmente em áreas com abundante fáscia, como nádegas e coxas, limitação da mobilidade articular secundária ao espessamento cutâneo e hipertricose leve. O envolvimento cutâneo não se associa a alterações viscerais, musculares, imunológicas ou vasculares.
Como observam Souza, Krug, Picon e Schwartz (2010), os erros inatos do metabolismo (EIM) constituem-se em um grupo heterogêneo de doenças genéticas raras, caracterizadas pela presença de mutações patogênicas em genes que codificam enzimas envolvidas em alguma rota do metabolismo. No caso das doenças lisossômicas, as enzimas que apresentam atividade deficiente são aquelas envolvidas no catabolismo intralisossomal de macromoléculas. São descritas aproximadamente ciquenta doenças lisossômicas, com incidência conjunta estimada em 1:7.000 recém-nascidos vivos.
O Sistema Único de Saúde (SUS) não possui política de assistência farmacêutica específica para doenças raras, e a própria construção dessa política esbarra em questões bióeticas que envolvem temas como equidade, recursos escassos e reserva do possível. Mesmo assim, a demanda por terapia de reposição enzimática – TRE – é cada vez maior, sendo às vezes balizada por ordens judiciais que entram em conflito com a Política Nacional de Medicamentos. Há de se considerar, também, o lobby da indústria farmacêutica para a entrada de novos fármacos no país (SOUZA, KRUG, PICON E SCHWARTZ 2010).
Temos ainda a mucopolissacaridose tipo I (MPS I), a doença de Fabry, a doença de Kikuchi-Fujimoto (DKF), entre tantas outras que, por comprometimentos neurológicos diversos, irão requerer atendimentos de curto, médio e longo prazos de reabilitação. Daí a relevância de articulação com a Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência. Para complicar ainda mais o dilema e sofrimento das famílias e das pessoas com síndromes raras, a busca de informações sobre suas dúvidas quanto aos exames diagnósticos, tratamento e procedimentos de cuidados, tendem a culminar em frustrações, pela falta de conhecimento dos profissionais de saúde que atuam fora das unidades de referência.
Luiz, Silva e Demontigny ((2015), identificaram três itinerários das famílias de pessoas com doenças raras, a saber: 1) “itinerário das famílias em busca do diagnóstico da doença”, desde o momento em que elas perceberam a necessidade de procurar atendimento à saúde até o diagnóstico da doença rara. Nas famílias, os homens, na maioria das vezes, efetivaram seu papel como provedor e as mães, com mais disponibilidade para ir às consultas, viagens e amplo domínio a respeito da saúde do filho, definiram-se como principais personagens nessa etapa de vivência familiar. 2) “itinerário das famílias no pós-diagnóstico da doença rara” se referiu aos três níveis de atenção à saúde: serviços especializados, serviço hospitalar e Atenção Primária. As famílias também buscaram profissionais habilitados para complementar o cuidado com a pessoa doente. 3) “itinerário de manutenção terapêutica” identificou as maneiras de acesso ao tratamento, que deveria permanecer durante toda vida, principalmente via judicialização. As famílias mostraram o prejuízo econômico significativo pelo não reconhecimento das doenças raras no sistema público de saúde.
Nada obstante as diretrizes nacionais para atenção integral às pessoas com doenças raras no Sistema Único de Saúde – SUS, elencadas na Portaria nº 199/2014, constatam-se lacunas e desarticulação com a Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência, como determinam os fluxos entre seus pontos de atendimento e a própria estrutura dos Centros Especializados de Reabilitação. Ao que cabe tecer crítica quanto aos desafios impostos aos familiares de crianças com doenças raras, em particular àqueles que residem longe dos serviços de referência disponíveis nos Estados da Federação, considerando a sua concentração nos hospitais universitários da rede pública, geralmente, nas capitais. As dificuldades começam no agendamento das avaliações, passando pelo transporte, que deveriam ser assegurados pelas secretarias municipais de saúde.
Ocorre que, via de regra, esses serviços são de difícil acesso através do sistema de regulação do SUS, o que depende da boa vontade e disponibilidade dos profissionais da Atenção Básica Municipal. Esses, sem fazer valer recursos da política do Tratamento Fora do Domicílio – TFD, por desconhecimento ou desorganização interna do setor, deixam de exercer o que lhes seria de competência, fazendo com que se percam consultas e procedimentos terapêuticos essenciais, expondo as pessoas com síndromes raras aos indesejáveis retrocessos e riscos de morte. A gestão pública quando inoperante, mais dificulta andamentos terapêuticos que contribui para o que deveria, qual seja, garantir retaguarda tranquilizadora para sofridos pacientes e familiares que vivenciam os dilemas das doenças raras, no Brasil.
Dr. Wiliam Machado
REFERÊNCIAS
AMORIM Adriana Gutstein da Fonseca, AIDÉ Marcia Kalil, DURÃES Sandra Maria Barbosa, ROCHAEL Mayra Carrijo. Síndrome stiff skin: relato de caso. An. Bras. Dermatol. [Internet]. 2011 Ago. 86( 4 Suppl 1 ): 178-181. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0365-05962011000700046&lng=pt&nrm=iso
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Coordenação Geral de Média e Alta Complexidade. Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt0199_30_01_2014.html
BRASIL. Ministério da Saúde (BR), Portaria no. 793, de 24 de abril de 2012 Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil. 2012 abr 25. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0793_24_04_2012.html
LIMA, Maria Angelica de Faria Domingues de e HOROVITZ, Dafne Dain Gandelman. Contradições das políticas públicas voltadas para doenças raras: o exemplo do Programa de Tratamento da Osteogênese Imperfeita no SUS. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2014, vol.19, n.2 pp.475-480. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232014000200475&lng=pt&nrm=iso
LUZ, Geisa dos Santos; SILVA, Mara Regina Santos da e DEMONTIGNY, Francine. Doenças raras: itinerário diagnóstico e terapêutico das famílias de pessoas afetadas. Acta paul. enferm. [online]. 2015, vol.28, n.5, pp.395-400. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21002015000500395&lng=pt&nrm=iso
SOUZA, Mônica Vinhas de; KRUG, Bárbara Corrêa; PICON, Paulo Dornelles e SCHWARTZ, Ida Vanessa Doederlein. Medicamentos de alto custo para doenças raras no Brasil: o exemplo das doenças lisossômicas. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2010, vol.15, suppl.3, pp.3443-3454. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000900019&lng=pt&nrm=iso
Por Emilia Alves de Sousa
Bom debate você nos traz sobre as doenças raras e suas nuances. Como trabalhadora de um hospital infantil tenho acompanhado os passos e desafios de famílias de crianças e adolescentes com doenças raras, que vão muito além das elencadas no texto. Aqui no HILP, temos várias crianças e adolescentes com Epidermólise Bolhosa, doenças autoimunes, que produzem bolhas e cicatrizes pelo corpo, e em muitos casos, mutilação dos dedos dos pés e das mãos. O tratamento é complexo, envolvendo uma alimentação adequada, domicílio adaptado, medicamentos, e insumos importados de custos elevados. Alguns usuários tem que buscar a via da judicialização para obter os insumos importados, como é o caso dos curativos ( 5 tipos) que são de melhor qualidade, mais fáceis de colocar e removê-los.Uma estratégia que esses pais adotaram foi a criação de uma associação dos usuários com as doenças, para trocarem idéias, compartilharem experiências e formas de acesso aos medicamentos e insumos necessários.
AbraSUS!
Emília