“Não existe nenhuma novidade em se achar que é preciso cortar os ACS”

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Oi pessoal,

Venho hoje publicar uma entrevista feita pela equipe da mostra Saúde É Meu Lugar com a Liu Leal, pesquisadora que  tem ajudado a enriquecer os debates sobre a revisão da PNAB.  Vocês provavelmente estão acompanhando a polêmica e as críticas ao que pode significar um grande enfraquecimento da Atenção Básica, né?  A CIT deve analisar e aprovar a proposta ainda esta semana e esse é um tema superimportante. A entrevista abaixo foi publicada na semana passada no nosso blog. Abraços. 

 

Este mês, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) ganhou grande destaque, e não foi só entre pesquisadores e militantes da Saúde Pública (a gente já falou um pouco disso aqui). Uma proposta de revisão da Política foi apresentada no fim de julho pela Comissão Intergestores Tripartite (a CIT, que conta com representantes de gestores da saúde no nível federal, estadual e municipal) e pegou muita gente de surpresa. Desde então, várias análises têm sido publicadas, tanto nos meios que se dedicam ao SUS como em grandes veículos de comunicação. No próximo dia 31, a CIT vai se reunir e pretende pactuar a revisão. Se isso acontecer, a nova PNAB já vai passar a valer.
 
Pesquisadores que estudam Atenção Básica denunciam a falta de transparência e debates públicos durante a construção do documento e ainda avaliam que, no contexto atual de ameaças ao SUS e limitação dos direitos, qualquer alteração em uma política tão importante deve ser vista com cautela. Eles mostram que, na verdade, o documento deixa muitas brechas para que a Atenção Básica seja prejudicada, em vez de aperfeiçoada. Entre as principais preocupações, estão a ausência de um número mínimo de agentes comunitários de saúde (ACS) nas equipes de saúde da família e o fim da indução financeira para implementação da Estratégia Saúde da Família nos municípios
 
Para conversar com a gente sobre esse processo, chamamos Liu Leal, que é doutora em Saúde Pública e colaboradora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Pública. Ela estuda há mais de dez anos a atuação dos ACS, foi conselheira do Conselho Nacional de Saúde e vem acompanhando essa polêmica há algum tempo, desde muito antes de a proposta ser divulgada. Para Liu, é importante que o debate sobre a PNAB alcance o maior número possível de pessoas, e em todos os espaços. 
 
 
Agentes de endemias e técnicos em vigilância, em ato na Fiocruz
 
Veja como foi nossa conversa:
 
A notícia da revisão da PNAB ficou em evidência agora, depois que a CIT divulgou a minuta que traz as possíveis mudanças, mas em alguns meios isso já era discutido há bastante tempo. O que se sabia sobre o processo antes de aquele texto ser divulgado?
 
Quando a minuta foi divulgada, ficamos muito preocupados, mas dois movimentos que tiveram início no ano passado já haviam começado a chamar nossa atenção. O primeiro veio do 7º Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica [um evento promovido pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) em outubro], que adiantava que haveria mudanças na PNAB. O segundo movimento partiu do Conasems [conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde], que publicou algumas produções nesse sentido. É possível encontrar, no site do Conasems, várias afirmações que depois apareceram na minuta. Esses dois movimentos nos deixaram em alerta.
 
Eu acompanhei essa agenda junto a um grupo do Poli [a Escola Politécnica da Fiocruz] e começamos a olhar essa discussão com atenção. O Conselho Nacional de Saúde tomou ciência disso ainda em novembro do ano passado – justamente o mês em que estava crescente a discussão dos planos de saúde populares, que depois foram chamados de acessíveis. Ficamos com a sensação clara de que essas duas coisas conversavam: de um lado, a ideia dos planos populares e, do outro, a discussão da PNAB, sendo que o público da Atenção Básica é justamente o potencial público dos planos populares.
 
Nós viramos o ano falando disso, inclusive no Conselho. Em janeiro, outro elemento nos chamou a atenção: uma reunião da CIT  em que se definiram os dois blocos de financiamento [tratava-se de uma mudança no financiamento que, segundo alguns pesquisadores , poderia facilitar a realocação de recursos da Atenção Básica para a média e alta complexidade]. O Conselho entendeu que havia um problema anunciado e, ainda no início do ano, criou um grupo de trabalho, um GT. O GT é um dos formatos que o Conselho pode organizar para construir um melhor entendimento sobre determinadas agendas, e deve ter, em sua composição, representantes das três categorias que compõem o Conselho: usuários, trabalhadores e gestores.
 
Os gestores nunca ocuparam a sua vaga no GT. O DAB sempre se dispôs a ir, mas, como não possui conselheiros atualmente, participou de reuniões do GT apenas como convidado, para prestar esclarecimentos. Isso se explica pelo seguinte: o debate sobre a revisão estava acontecendo apenas em um grupo na câmara técnica da CIT. Eles não se interessaram em construir um espaço de discussão no Conselho porque, para eles, não era necessário passar pelo Conselho. O Conselho, por sua vez, tem tentado resgatar seu lugar na aprovação de políticas.
 
Liu Leal. Crédito: Cebes
 
Isso tem sido uma questão já há algum tempo, certo?
 
Sim. Em geral havia concordâncias entre as políticas propostas e as ideias do Conselho, os gestores olhavam o que as conferências de saúde indicavam e estruturavam as políticas a partir disso. Mas houve situações em que o Conselho discordava fortemente e, mesmo assim, o governo federal deu andamento às decisões, como no caso da EBSERH [a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada em meio a grande polêmica em 2011].
 
Estamos vivendo agora este momento de discutir qual o papel do controle social frente a aprovação de políticas. Em 2012 foi promulgada a lei 141 , que faz com que hoje possamos dizer que as políticas precisam obrigatoriamente passar pelo CNS para aprovação: é uma lei sugestiva sobre o papel do controle social na saúde.  
 
E como foi que se chegou à divulgação da minuta?
 
Bom, daquele período até agora, os segmentos de gestão sempre nos diziam que não havia nenhum documento formatado, apenas debates. Fizemos um pedido formal solicitando o documento no início do ano e apenas mais de três meses depois, em maio, recebemos uma primeira minuta. Tivemos 15 dias para analisar e apresentar nossas observações na reunião seguinte do Conselho. Nessa reunião, comentamos pontos que entendíamos como preocupantes, mas a resposta que recebemos foi a de que aquele documento ainda era muito preliminar e que na realidade ainda não havia nada concreto.
 
Em julho, propusemos ao Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde], Conasems e Ministério da Saúde que eles apresentassem sua posição a respeito da necessidade de revisão da PNAB. Tivemos uma nova reunião em que, novamente, nenhum documento foi apresentado. Além disso, várias das questões que havíamos trazido – como a universalização focada e seletiva, a questão dos ACS e a carteira de serviços – não foram respondidas. Foi dito que estávamos ‘delirando’, que a discussão ainda não estava amadurecida, que estávamos anunciando coisas que não existiam e que o debate só seria feito quando houvesse de fato uma proposta. Porém, quinze dias depois dessa reunião, foi apresentada a minuta em reunião da CIT. Foi por isso que a divulgação surpreendeu todo mundo.
 
Esta semana você participou de uma audiência pública sobre o tema na Câmara dos Deputados. Como foi?
 
É importante ocupar todos os espaços de debate. Quanto à audiência, sempre que se coloca o poder público na discussão, isso é importante para a sociedade. Quando o parlamento abre agenda para nossas pautas, isso traz visibilidade e gera uma tensão política com o poder executivo. Houve pouca participação de deputados – apenas três deputados federais e dois estaduais -, mas a audiência serve para tornar essa pauta presente naquele espaço. Além disso, é naquele lugar que os ACS têm conseguido reverter as leis que os prejudicam. Hoje, se uma revisão da PNAB fosse aprovada sem o aval do Conselho Nacional, os agentes ocupariam o Congresso e poderiam conseguir uma revogação.
 
 
A mobilização por parte dos ACS está bastante intensa…
 
Para o SUS e para os ACS, é ótimo que essa discussão esteja acontecendo. Nos últimos dez anos, eles estiveram muito restritos a um debate mais corporativo. Por mais que o SUS seja uma pauta deles – afinal, o único mercado de trabalho para ACS é o SUS -, essa é a primeira vez que eles realmente se enxergam no campo da saúde coletiva. Isso é muito importante. E para os militantes da saúde coletiva também é significativo, já que atualmente estamos com pouca força para resistir aos retrocessos. Ter o apoio político dos ACS é muito importante. Espero que saiamos disso tudo mais fortes.
 
A mobilização em relação à Atenção Básica vinha sendo pequena, não temos uma boa apropriação do tema no conjunto da saúde coletiva. Mas a pauta da revisão fez com que as pessoas ficassem preocupadas. Foi interessante porque, junto com a divulgação da proposta, houve no Rio de Janeiro a ameaça de que clínicas de família seriam fechadas. Isso demonstrou que, na verdade, a política não precisa estar pactuada: só a intencionalidade de dizer que a Atenção Básica pode ser mais seletiva e focalizada já anuncia que os gestores podem começar a fazer isso.
 
O grande fator é o argumento da redução de custos, já que a crise econômica está bem grave.
 
Essa é uma questão muito incômoda. Já há vários estudos apontando o quanto a ESF é eficaz e sabemos que a Atenção Básica não é muito onerosa, comparada com a média e alta complexidades. Enfraquecer a AB não é exatamente interessante, mesmo se focarmos apenas do ponto de vista econômico. O que está em jogo?
 
Sim, nós falamos muito isso. Nós temos um sistema universal de saúde e, em comparação com outros países, gastamos pouco com saúde. Mesmo assim, fazemos muito. Quando olhamos os indicadores de mortalidade e morbidade ao longo do tempo, vemos que eles só foram melhorados com estratégias de Atenção Básica. Qualificamos os cuidados com crianças e gestantes, melhoramos os indicadores em doenças crônicas… Todos nós, que somos da área, entendemos que não só o dinheiro gasto com saúde em geral é um investimento, mas também que a Estratégia Saúde da Família é fundamental. A qualificação da Atenção Básica é dada pela Saúde da Família e, podemos acrescentar também, pelo Programa Mais Médicos. Nos lugares onde o Mais Médicos está presente, os indicadores são melhores. Os médicos do programa não podem atender em outros serviços, têm dedicação exclusiva à Atenção Básica, e isso gera maior impacto no cuidado. Se retomarmos o modelo anterior, perderemos muito em qualidade e eficiência. Podemos dizer que a relação custo-benefício na Saúde da Família é muito melhor.
 
Porém, a resposta que se quer dar à crise conjuntural é essa. Não podemos deixar de levar em conta os efeitos da Emenda Constitucional 95, do congelamento dos recursos para a saúde. Uma coisa que eu reforcei na audiência pública foi a necessidade de revogação dessa emenda, que é extremamente lesiva à saúde do povo brasileiro e às demais políticas sociais, como educação, assistência.
 
Existe uma dimensão privatista em jogo. Com a redução de recursos, em vez de oferecer um serviço, organizar um prédio, comprar insumos e contratar profissionais, os gestores podem começar a comprar procedimentos da iniciativa privada.
 
Isso é mais barato?
 
É mais interessante do ponto de vista eleitoral. E já acontece bastante. Só que hoje, na Atenção Básica, são privatizadas a gestão dos serviços e a contratação de profissionais, mas não a oferta, ainda.
 
É importante dizer que nem todos os gestores municipais são a favor do desmonte, mas eles querem recursos para responder à população de acordo com as necessidades mais imediatas. Se os recursos vão diminuir, para que fazer Educação Permanente, formação de trabalhadores, compra de remédios?
 
Como começou sua relação com agentes comunitários de saúde?
 
Eu entendi que a disputa que podemos fazer na sociedade é com esses profissionais, que são pessoas das comunidades. Estudei o trabalho dos agentes no doutorado, a institucionalização desse trabalho, o projeto de lei que, com debates em todo o país, conseguiu dar um grande passo para a desprecarização, instituindo a seleção pública para a contratação. Acompanhei isso desde essa época, e já se dizia que não deveria haver ACS contratado diretamente pelo poder púbico, que isso era impossível pela lei de responsabilidade fiscal, que eles deveriam ser contratados em parcerias, terceirizados. Mas, com muita articulação e luta, no começo dos anos 2000 eles conseguiram mudar a legislação e instituir a seleção pública – abriram um precedente para a construção desse tipo de processo que não é um concurso, pois só seleciona dentro do território.
 
Acompanhando essa pauta, é fácil ver que não existe nenhuma novidade em se achar que é preciso cortar os ACS. E por vários motivos. Quando esse trabalhador deixa de estar tão vulnerável em termos de contratação, ele pode, por exemplo, escolher e expor se é a favor ou não de determinado candidato.
 
Eles hoje constrangem o poder, vão ao Congresso e conseguem tudo por unanimidade. Desde 2004 ou 2005, eles começaram a fazer uma espécie de ‘visita domiciliar’ , como eles dizem, aos gabinetes dos deputados: um ACS da região do deputado vai até o seu gabinete conversar pessoalmente com ele. Diferente de qualquer outra categoria, há mais de 10 anos eles construíram uma relação na Câmara a partir dessa prática de identificar, conhecer e constranger os deputados. Nenhum deputado consegue fazer falas contra as suas demandas – isso não quer dizer que os parlamentares estejam sempre de acordo com os ACS, mas não fazem as falas. Existe uma tensão política que tem base territorial mas é importante em termos nacionais.
 
Desde a regulamentação do vínculo, a agenda tem sido tensa. Não se deixou, por exemplo, que a formação técnica tivesse continuidade, e os lugares que conseguiram realizar a formação o fizeram a partir de recursos próprios, sem recurso algum do governo federal.
 
Agora, os ACS estão com dois projetos de lei em andamento. Um é o do piso salarial, que na semana passada foi aprovado pro unanimidade, e outro sobre as atribuições da categoria. Esse segundo projeto tem relação direta com as portarias 958 e 959, do ano passado, que acabavam com a obrigatoriedade do ACS nas equipes de saúde da família. Essas portarias foram revogadas, mas ainda há o receio de que eles fiquem sem atribuições. Na PNAB, agora, fica clara a preocupação em relação ao piso.
 
Quando participou do seminário do Conselho Nacional na Fiocruz, você falou da possibilidade de que 40% da força de trabalho de ACS seja demitida… Pode falar um pouco mais sobre isso?
 
Em torno de 40% dos agentes estão ainda em vínculo precário, e esses trabalhadores, mais vulneráveis, podem ser demitidos com muita facilidade.
 
Há muitas questões importantes envolvidas nessas demissões, e algumas são pouco faladas. No Rio de Janeiro, por exemplo, há lugares em que os outros profissionais das equipes, como médicos e dentistas, só conseguem entrar com a presença de um agente, que é morador da comunidade. Tirar esse trabalhador significa, em alguns casos, tirar o acesso de toda a população daquele lugar aos serviços. Na região amazônica, nas populações ribeirinhas, muitas vezes os agentes são os únicos trabalhadores da saúde que vivem na comunidade. Para atender a populações ribeirinhas, há um barco que passa a cada dois meses nas regiões, porque elas são de difícil acesso. Fora desses dias, os únicos trabalhadores de saúde presentes são os agentes. Nesses locais, os agentes costumam ter inclusive atribuições mais amplas, porque não há mais ninguém para realizar o acompanhamento. Sem eles, uma gestante ficaria dois meses sem ver nenhum profissional de saúde. Por isso, a região Norte deve ser a mais atingida pela nova PNAB: se retirarem os agentes, a população vai ficar desassistida a maior parte do tempo. Eu, pessoalmente, acredito que agentes não vão deixar de ser contratados, justamente porque são muito necessários. Mas, de todo modo, é muito ruim que isso seja colocado na Política como uma opção.
 
Agente comunitária de saúde em ato contra a revisão da PNAB na Fiocruz
 
Tem alguma coisa boa no texto?
 
Sim, o texto não é de todo ruim, mas o problema maior é o que não está escrito. Ele tem que ser lido com olhos de gato. Quem faz uma leitura mais superficial não acha o texto tão ruim, mas é preciso lê-lo conjunturalmente. Ele desmonta muita coisa. O pessoal da saúde bucal, por exemplo, diz que a nova PNAB vai acabar com ações da área. O documento não diz isso explicitamente, mas, como não define critérios de financiamento – como a PNAB atual faz – , essa é, sim, uma possibilidade. Então o problema é a intenção que o texto carrega. Essa intenção já anunciou o desmonte.
 
Quais são as perspectivas?
 
Nem bem a consulta pública tinha acabado – no último dia da consulta – o ministro da Saúde já deu uma coletiva de imprensa anunciando as mudanças. Acredito que o texto até pode vir a ser acrescido de algumas das contribuições [foram mais de seis mil], ele pode ser melhorado. Mas isso não quer dizer que o conteúdo principal não vá estar diluído ali. A verdade é que não tem motivo algum para ser fazer uma revisão nesse momento, além da intenção de se enxugar a Atenção Básica. Pode ser que eles deixem a pactuação para setembro, para deixar a pauta amornar um pouco, e acho que a mobilização ainda não ganhou o espaço que deveria ganhar – na região Norte, por exemplo, pouco se fala sobre a revisão da PNAB, embora essa região deva ser muito afetada. Sempre corremos o risco de a pauta amornar demais, de perdermos força… Mas não quero pensar nisso. Estou mais preocupada em fortalecer.