Um roteiro para pensar a falta de sentido dos ajustes fiscais e das reformas do trabalho e da previdência, no Brasil e no mundo, diante da perspectiva de redução dos custos e do aumento da produção proporcionada pela revolução tecnológica.
A soma do dinheiro que circula na economia mundial não corresponde ao conjunto de riquezas produzidas, nem ao estoque de recursos naturais e, menos ainda, ao conjunto das potencialidades humanas expressadas na sua capacidade tecnológica. O capital monetário não espelha, portanto, o que podemos, nem os recursos dos quais dispomos.
O conceito de capital em Bourdieu “é traduzido como ativos econômicos, culturais ou sociais que se reproduzem e promovem mobilidade social numa sociedade estratificada”. Em outras palavras, a riqueza que o capital monetário representa não diz respeito a totalidade dos recursos humanos e ambientais disponíveis. Na economia monetária o capital simbólico retido no capital monetário serve a estratificação social e não ao provimento de necessidades.
Capitais monetários são signos da identidade social daqueles que os possuem e dos que dele são privados. Dinheiro é um tipo de capital produzido para permitir a acumulação de poder e riqueza, para saciar a necessidade de sentido indentitário e ontológico. Ou seja, serve a pretensa hierarquia das identidades. O limite da capacidade de produção e distribuição de riquezas não deve ser avaliado, portanto, a partir da disponibilidade de capital financeiro.
Quando desejamos saber se há ou não escassez de um determinado recurso, bem ou serviço, não devemos olhar para a quantidade de moeda disponível. Nossas necessidades variam de acordo com inúmeros fatores. A disponibilidade de um bem ou recurso é um dado sujeito a variáveis estocásticas, acumuladas no passado, sujeitas a interações com o presente e com o futuro, que podem ser estimadas, porém jamais conhecidas de forma exata.
É essa permanente indeterminação a priori que explica, por exemplo, o fato de algumas sociedades serem ricas em estoque de recursos e miseráveis em riqueza monetária. Além disso, a riqueza que produzimos está submetida a um regime de acumulação desigual que gera escassez mesmo onde, e quando, há o fenômeno de superprodução e abundância de recursos naturais.
Desde o surgimento da agricultura e, mais intensamente, após a revolução industrial, que o problema da escassez tem sido social, cultural e político. Não é apenas uma questão referente a disponibilidade técnica, vinculada ao saber e ao conhecimento. A escassez é, também, uma questão de alocação dos recursos de acordo com as necessidades imediatas e a expectativa de necessidades futuras.
A produção de alimentos, bens e serviços tem se mantido a frente da curva de crescimento demográfico. Os problemas da pobreza e da miséria extrema decorrem, de fato, da dificuldade de alocação dos bens e recursos. Como vimos acima, o dinheiro é um símbolo de poder identitário, de hierarquia de sentidos. Ele não serve meramente ao regime de trocas, de modo ainda mais complexo a moeda representa e, na mesma medida, “é” poder. O dinheiro se tornou um signo existencial.
Seja na visão estatista ou liberal, sempre partimos de um pressuposto baseado na espoliação e no saque, seja do ambiente, seja de outros grupos, tribos ou nações. Parece que o dinheiro se move de acordo com uma relação desigual de força. Não é apenas que dinheiro atraia dinheiro, mais precisamente, a força para exercer alguma forma violenta de imposição atrai dinheiro. Assim, o valor moeda é além de um signo de valor, uma forma de conversão, e reconversão, do poder para violar, impor e dominar.
O capital monetário expressa, um arranjo simbólico, entre o concreto e o virtual, um determinado modelo de produção de riquezas. Apesar do que advogam os partidários das teorias de valor e mercado, a riqueza monetária contabilizada num sistema de lastro, como o padrão ouro, ou de moeda fiduciária, baseada em dívidas, é uma ficção. O dinheiro e sua distribuição expressam estoques de sentido, modos de narrar o mundo. A moeda é, portanto, uma construção humana que expressa as visões de mundo e o espírito de um determinado tempo histórico.
O que chamamos de economia não passa de um simulacro para o conjunto de valores que a espécie humana associa a subsistência em um ecossistema hostil, em que a escassez e a concorrência por recursos nos levaram a oscilar entre a competição violenta e a colaboração, como forma de prover nossa subsistência. O significado preciso de economia, refere-se a capacidade de economizar e alocar recursos de acordo com a disponibilidade e possibilidade de transformar recursos em energia, bens e serviços.
Ou seja, atualmente imprimimos moeda de acordo com um conjunto de parâmetros situados entre o estoque de recursos naturais disponíveis, a infraestrutura instalada, a medida de capacidade dissuasiva (de caráter diplomático e militar), o capital humano e as expectativas de futuro, projetadas em função desses parâmetros. Hoje, toda a moeda é gerada a partir de dívidas. Não há, como escrito acima, uma correspondência precisa entre o que podemos fazer e a riqueza simbólica, imobilizada no capital monetário. Assim, reitero, é possível inferir que a riqueza expressa em moeda é inferior ao potencial humano para prover nossas necessidades e desejos. Basicamente, nosso sistema monetário corresponde a correlação de forças que permitem o dispêndio e acumulação de recursos através de endividamento.
Quando uma empresa, ou um Estado, quebram não queremos designar, necessariamente, um colapso dos valores e recursos existentes. O que significa uma situação de falência, ou mesmo de prosperidade, é um determinado arranjo no padrão de trocas. Essas regras podem colapsar e, nesse caso, as pessoas podem ficar sem recursos monetários para arcar com as hipotecas de suas casas, por exemplo.
Na Crise econômica de 2007–2008 nos EUA as pessoas ficaram sem ter onde morar, enquanto a infraestrutura pela qual não podiam pagar simplesmente se deteriorava. Não havia razão para a inadimplência gerar uma perda no valor dos imóveis, similar a incapacidade de manutenção das parcelas da hipoteca.
O resultado foi que não havendo moeda capaz de dar conta do ressarcimento do investimento monetário que permitiu a construção das casas, as pessoas ficaram sem ter onde morar e as residências desocupadas viraram ruínas. O sistema de pirâmide no qual a concessão de empréstimos acabou por se configurar, gerou a bolha que estourou na crise. Mas o importante é perceber que a crise se refere a um colapso no sistema de trocas monetárias. A capacidade de construir casas jamais esteve em questão durante toda a crise imobiliária no mercado americano.
Então, de onde vem essa defasagem entre o que podemos e a inexistência de capital monetário? Parece que o dinheiro deveria corresponder minimamente a existência de recursos e capacidade para prover necessidades.
Após algumas centenas de milhares de anos vivendo sob os desígnios e incertezas derivados das forças da natureza, da escassez e da ameaça de predadores e inimigos, nossa percepção de mundo não está mais em sintonia com o aumento das potências humanas. O acúmulo de conhecimentos, geração após geração, nos levou a desenvolver tecnologias que aumentaram exponencialmente nossa capacidade de prover nossas necessidades. A produção de bens e serviços segue aumentando em ritmos acelerado, através da automatização, robotização e desmaterialização dos processos produtivos.
Ainda assim, vivenciamos nossa existência como estando permanentemente sob ameaça do ambiente e de nossos semelhantes próprios em feroz competição, seja por abrigo e alimentos, seja por status e poder. A vida humana é marcada por intensa mesquinhez, medo e agressividade a despeito de toda integração e solidariedade que sustentam nosso modo de vida.
No início do século XX a Europa esteve convulsionada em duas grandes guerras que afetaram todo planeta. As nações que entraram em guerra não estavam enfrentando crises de escassez de recursos. Elas buscavam maximizar seu poder e controle sobre territórios e recursos naturais, num momento em que a capacidade de produção havia se expandido exponencialmente, em função do desenvolvimento do motor a explosão e da difusão da produção e distribuição de eletricidade.
O mesmo processo parece estar se repetindo agora. A difusão do conhecimento, pela internet, a automatização e a desmaterialização dos processos de produção e prestação de serviços estão gerando uma crise de sentido. A necessidade do trabalho humano encontra-se novamente sob indeterminação. Não sabemos para que, e no que, grande parte dos seres humanos, serão úteis no sistema de produção em que estamos imergindo. O conceito de utilidade do trabalho está para ser reescrito.
O planeta já parece estar superpovoado e o padrão de consumo do primeiro mundo é insustentável em termos de equilíbrio ambiental. O sentido existencial, subjacente ao modelo da civilização industrial planetária, precisa ser totalmente reformulado. O papel milenar do sistema de trocas monetárias não é mais viável e, em termos modernos — como meio de obtenção, manutenção e acumulação de poder — tornou-se uma rota de suicídio para a humanidade.
Os modelos de ajuste fiscal que vêm sendo empreendidos para enfrentar a ameaça da superprodução industrial da China não podem nos trazer outro resultado que não o aumento das tensões e conflitos geopolíticos. Diante da insegurança interna, as populações são facilmente capturadas por discursos de ódio e medo do diferente e de inimigos externos.
Podemos evitar as gigantescas conflagrações e conflitos que se anunciam para o decorrer do século XXI. No entanto, isso exigirá a coragem para (re)definirmos nossos sistemas econômicos de modo que se torne possível utilizar a combinação de nossos recursos e tecnologias para a promoção do bem comum e da qualidade de vida.
Nesses tempos protofascistas em que estamos vivendo podemos estar adentrando na antessala de um momento trágico. As instituições e seus agentes, principalmente os políticos, perdem seu poder e prerrogativas. Eles ainda não perceberam, atarefados que estão em deslegitimar sua própria dignidade, mas estados totalitários surgem da erosão institucional e do aviltamento da política.
Nessa fase vemos uma perda generalizada da legitimidade institucional. O fato de, em Porto Alegre, alguns empresários terem vindo a público apoiar a aprovação leis que destituem o estado de bem-estar social, aliando-se a Marchezan, é mais um sintoma de que a ordem legal está se dissolvendo.
O jogo econômico é um capítulo da ordem institucional e não o seu determinante. O sistema monetário, tido como uma verdadeira deidade pelos ultraliberais e conservadores é um apêndice da economia. Essa ordem está se invertendo completamente.
Nesse momento, a sequência de trocas monetárias está colocada acima da economia. E a economia está acima da ordem institucional. O discurso economicista que pretende fundamentar as reformas e o ajuste fiscal tornou-se um simulacro de pura força e arbítrio que poderá acabar com o Estado de direito.
As expectativas, então, estão deslocadas para o campo da pura força. Toda institucionalidade está sujeita a regimes de poder violento. Ninguém mais ousa confiar no direito.
Seguindo nesse ritmo, em algum ponto, poderemos ver, de fato, o fundo do poço. Do mesmo modo, como muitos eleitores se arrependeram de votar em Marchezan e Dória, muitos empresários se arrependerão de colocar o dinheiro antes da economia e a economia antes do direito.
Em 2018 teremos que lutar, resistir e apontar para um mundo onde a humanidade volte a ser mais do que uma aposta de alto risco.