Saber cada vez melhor e mais precisamente o que não sabemos é conhecimento do ponto de vista das possibilidades de desenvolvimento técnico que a resolução de problemas científicos nos proporciona.
Desse modo o efeito psicossocial da pandemia de Covid-19 que é mais estressante e do qual, paradoxalmente, podemos extrair mais aprendizado é sabermos os limites do que conhecemos.
Nesse momento as pesquisas científicas investigam uma série de mistérios sobre a ação do novo coronavírus no organismo humano.
Por exemplo: Não sabemos a razão de crianças sem nenhuma comorbidade terem ido a óbito em razão dessa terrível doença.
Também não entendemos porque o vírus é detectado em quase todos os tecidos e órgãos do corpo, ainda que estatisticamente, o sistema respiratória seja o mais vulnerável.
No entanto, há mistérios também em aspectos positivos. Há várias hipóteses plausíveis para a queda na letalidade observada nesse momento da pandemia. Mas ainda ignoramos qual ou quais dessas hipóteses se verificarão consistentes com a realidade da evolução da pandemia.
O fato é que sabemos que mais pessoas irão morrer onde as recomendações baseadas no esforço da investigação científica – e do saber técnico acumulados historicamente – forem ignoradas. Do mesmo modo, os fatores socioeconômicos são mais determinantes para o número de óbitos do que qualquer outra variável étnica ou genético.
Também é certo que os dados que estamos acumulando com a análise dos comportamentos das populações ao redor do planeta, bem como as evidências em relação aos mecanismos de evolução do contágio e o curso clínico da infecção no organismo humano, irão nos fazer avançar no conhecimento e na capacidade de criação, adaptação e modificação de nossos modos de vida.
A sobrevivência da espécie humana depende de nossa capacidade de criação adaptativa.
O coronavírus, em termos naturais, não é diferente de outros organismos potencialmente pandêmicos que o homo sapiens já enfrentou desde a aurora dos tempos. O que torna a Covid-19 especialmente letal é a sociedade industrial – na sua forma de capitalismo financeiro global – que desenvolvemos ao longo do século XX.
Com uma alta capacidade de fazer fluir, capitais, mercadorias e pessoas por todos os continentes nos tornamos um tipo peculiar de auto ameaça. Estamos destruindo o único ambiente no qual podemos viver. Fazemos isso através da queima de combustíveis fósseis em larga escala para alimentar e abrigar populações crescentes de modo desigual e voraz.
Assim, epidemias e pandemias fazem parte do novo pacote de ameaças a sobrevivência de muitas espécies, inclusive a nossa.
O sofrimento decorrente da concepção errada da incerteza e do desconhecido:
É alarmante o sofrimento psíquico que decorre da queda das ilusões a respeito das certezas prometidas pelo entendimento vulgar das promessas do desenvolvimento científico.
Parece que estivemos dispostos a deixar Deus de lado em nome do poder da ciência. Mas essa troca é equivocada. Deus não é o centro das religiões ocidentais. O tema da religião é o consolo para uma realidade mundana, imprevisível e incompreensível. De todo modo, a saudosa ordem teológica em que a “Verdade” estava escrita na Bíblia talvez seja apenas uma mistificação. Mas pensar que a ciência iria nos dar uma verdade tão absoluta e tão consoladora quanto a religião também não passa de uma ilusão.
A ciência não promete uma verdade última capaz de ocupar o lugar da religião. A ciência propõe o aumento da capacidade técnica (submetida a uma política capaz de definir as necessidades de produção do bem comum), de resolver problemas e atender nossas necessidades individuais e coletivas.
Nunca o senso comum esteve tão exposto a incerteza inerente aos procedimentos de pesquisa científica. Isso explica o ressentimento contra a ciência e o retorno a crenças místicas, mitos religiosos, superstições e pensamento mágico.
Temos que aceitar que a existência só persiste em meio a dúvida e incertezas. A ciência é uma ferramenta que a humanidade criou para sobreviver nesse contexto de permanente imprevisibilidade.
Não poderemos superar os desafios do século XXI usarmos a ciência para ocupar o antigo espaço da religião. Podemos chegar a fase adulta, no âmbito da espécie, e abrir mão de realizar as promessas infantis do pensamento mágico.
A ciência tem viabilizado nossa existência num universo em que o mistério será sempre a regra. Novas descobertas e novos contextos levam a novos mistérios. É esse encontro constante com a linha do acontecimento em que a incerteza colapsa em eventos reais que a vida persiste.
Quanto mais precisamente formos capazes de cartografar o que ignoramos, novas questões para pesquisa irão surgir. O resultado das pesquisas irá melhorar as ferramentas que ajudarão a resolver os problemas que o futuro seguirá nos apresentando.
A pandemia de Covid-19 representa um sofrimento que exige o afastamento e a reflexão que permitirão a humanidade a transformação necessária para a sobrevivência da espécie na invenção de um novo modelo de civilização mais capaz de afirmar a vida.