
Uma reflexão sobre o universo como aparece para observadores como somos e como ele é, para além da nossa percepção.
A capacidade de percepção das dimensões da realidade não implica em estarmos enclausurados em “camadas”. Não há camadas da realidade; o real é absoluto. O que existe são diferentes formas de percebê-lo. Por nossa experiência perceptiva, sabemos que aparência e realidade estão longe de serem equivalentes. Das diversas camadas da percepção, extraímos a impressão ilusória de que há múltiplos níveis de realidade.
O real existe globalmente, e não em compartimentos que nos confinariam. A totalidade do real supera nossa capacidade perceptiva. Nós, nossa mente, nosso intelecto, nossa autopercepção e nossa consciência constituem elementos dentro da realidade.
Como nossa percepção se desenvolveu a ponto de construir uma simulação intelectual da realidade em nossa mente, somos capazes de nos conceber como estando fora dessa realidade projetada. Isso nos permite contemplar o real como se o observássemos de um ponto externo. Essa é a base de nossa ideia de causalidade como modo de interpretar as conexões observadas entre fenômenos e objetos. O mesmo se aplica à construção da ideia de divindade nas mitologias e teologias: deuses são a expressão simbólica de nossa mente, percebida como uma transcendência da condição de observadores que temos sido ao longo da história.
Neste texto, argumento que observamos as intermitências e repetições em nosso campo de observação e as projetamos sobre o desconhecido, esperando que os padrões a que estamos habituados expliquem a imensa margem oceânica além das praias de nossa percepção insular. De fato, ao longo do tempo, o desenvolvimento do intelecto tem nos permitido ampliar o escopo de nossa percepção sobre a realidade. Contudo, apesar de toda a evolução dos últimos milênios, e especialmente nos últimos séculos, ainda não sabemos sequer a extensão exata do que, sendo parte da realidade, ainda escapa à nossa percepção.
Imaginemos que a realidade é plena para qualquer de seus seres ou objetos em todas as suas dimensões. Não há como estar excluído dessa totalidade, embora seja plenamente coerente não perceber todos os elementos ou dimensões da realidade dentro de um dado contexto perceptivo. Alguns seres percebem diferentes faixas do espectro eletromagnético na construção de suas imagens do mundo; outros, como morcegos, usam o som. Mas todos habitam a realidade onde fenômenos eletromagnéticos existem.
Assim, um ser de percepção restrita a duas dimensões ainda existe na realidade onde todas as dimensões se manifestam. Para simplificar, consideremos o conjunto de dimensões a que temos acesso: três espaciais e uma quarta dimensão espaço-temporal.
Um ser bidimensional poderia se deslocar, por projeção de sua mente, ao longo do eixo de profundidade da terceira dimensão, elevando-se ou mergulhando abaixo do plano bidimensional em que seu corpo existe. Ainda assim, ele não poderia “perceber” ou “ver” objetos tridimensionais. Em sua percepção, uma esfera apareceria como um ponto que se amplia até formar um círculo, depois se contrai até voltar a ser um ponto e, por fim, desaparece. Entretanto, como ele existe numa realidade tridimensional — sendo apenas sua percepção restrita a duas dimensões —, ele consegue projetar a sombra tridimensional ao pensar seu plano bidimensional como uma sequência empilhada de planos. A esfera poderia ser intuída na soma de círculos empilhados no eixo acima e abaixo do plano bidimensional.
Minha tese é que já vivemos em um mundo onde nossa percepção do tempo como um espaço era muito mais difícil para nosso intelecto. Certamente, todos os seres vivos possuem uma forma de memória onde os processos bioquímicos podem estar encadeados de modo sistêmico. Porém, em sistemas neurológicos, a memória atinge um caráter mais complexo e elaborado. As memórias nos permitem articular processos de comunicação, nos quais construímos acervos informacionais compartilhados. É como se a dimensão do espaço-tempo fosse se tornando mais conhecida ao longo do desenvolvimento de nossas capacidades intelectuais e cognitivas.
No passado, nossa sensação de estarmos enclausurados no plano do presente da quarta dimensão pode ter sido muito maior do que agora. Atualmente, há muitos suportes, além de nossas capacidades neurológicas, para a reconstituição de dados da memória em relação ao passado. De modo paulatino, nossa capacidade de inferência em relação a eventos futuros também tem se ampliado com o refinamento e aprofundamento de nossa habilidade de captar padrões em repetições e variações em torno dos dados da observação.
O que pretendo evidenciar é que nossa percepção se desenvolveu e complexificou a ponto de nos permitir entender o caráter do tempo enquanto dimensão da realidade. Nossa mente é capaz de compreender o passado e o futuro como planos além de nossa capacidade imediata de percebê-los. O passado e o futuro não desaparecem no ato presente; de fato, é nossa percepção que nos permite uma agência limitada sobre o espaço topológico em que o passado e o futuro existem.
Já é evidente que nossa capacidade de restituir o passado (através de suportes à memória) e projetar o futuro (em termos do cálculo de probabilidades) vem se desenvolvendo ao longo da história humana. Chamamos esse processo contínuo de evolução e de revolução quando ocorre um salto. A revolução cognitiva, com o desenvolvimento da linguagem, da escrita e da agricultura em nosso passado remoto, e as revoluções científica, industrial, das comunicações, da computação, da internet e das inteligências artificiais nos últimos séculos, décadas e anos.
Aqui cabe a consideração final de que os mitos, as teologias e filosofias constituem modos de investigação da realidade para além de nossas capacidades imediatas de percepção, através de nossos sentidos e conceitos socialmente construídos. Nossas crenças compartilhadas não são meros enganos ou erros; são, mais propriamente, modos de sondar a realidade externa à nossa percepção a partir de consensos socialmente estabelecidos.
No monoteísmo, como aparece no pensamento de alguns filósofos da antiguidade na Grécia, concebemos Deus como a causa de todas as causas. Podemos interpretar essa hipótese teológica e filosófica como um modo de projetar sobre o desconhecido a percepção preliminar que temos das conexões entre os fenômenos como cadeias de causalidade. É um tipo de recorte heurístico de algo que é necessariamente inter e multi conectado, favorecendo o desenvolvimento de nosso intelecto. É certo que umas coisas parecem causar as outras. Porém, de modo rigoroso, tudo está numa relação de interferência, complementaridade e continuidade.
Apesar de em nossa mente termos a sensação de que o passado parece se desvanecer, enquanto o futuro parece não existir ainda, já há evidências de que a realidade se estende na direção do passado e do futuro enquanto topologias que a mente se tornará cada vez mais capaz de navegar e explorar, segundo nossa curiosidade. Daí surge a questão do quanto, nesse processo, vamos nos diferenciar do que fomos e do que somos.
A experiência existencial dos caçadores-coletores é tão real agora quanto foi há 100 mil anos. Na verdade, ontologicamente, ela está num lugar tão legítimo no conjunto do espaço-tempo quanto o ano de 2025 ou alguma realidade daqui a 500 ou 10 mil anos. Assim, ainda que sejamos substituídos por entidades cibernéticas, movidas a inteligências artificiais, ou que ocorra alguma forma de fusão entre biologia e artefatos tecnológicos, não teremos desaparecido. Nosso momento permanece como um topos próprio da realidade da qual ele é parte legítima e simétrica. Não é necessário que confundamos o valor transcendente do real com nossos valores no interior da manifestação perceptível da realidade. Os valores conscientes a respeito dos índices perceptíveis da realidade não são errados ou excludentes em relação ao valor transcendente que emerge do conjunto dos índices do real.
Há legitimidade em nossas crenças compartilhadas, respeitando seu caráter de construção permanente e para a realidade existente além de nossa capacidade de observar. O desconhecido constitui, em si mesmo, um valor. A parcela da realidade que não entendemos não está distante de nós. Ela persiste no contexto das relações orgânicas, no funcionamento das células e suas moléculas, nas relações entre as forças de coesão e repulsão no interior dos átomos com suas partículas elementares. O caráter fundamental da incerteza nos dá indícios de como a realidade inacessível a nós não constitui outro mundo. Há um mundo, inacessível nos limites de nossa percepção, que, a despeito de opaco, é suporte e completude para a resposta impossível ao mistério da existência.
Em última análise, a jornada da percepção humana, da construção de mitos à complexidade das ciências modernas, revela uma constante expansão de nossa compreensão da realidade. Embora ainda estejamos confinados aos recortes de nossa experiência e aos limites de nossa cognição, a busca por desvendar o que transcende nossa percepção imediata é, por si só, um testemunho do valor intrínseco do desconhecido. A realidade, em sua plenitude multidimensional, continua a nos convidar a ir além das fronteiras do visível e do imediatamente compreensível, sugerindo que nossa capacidade de explorar o passado e projetar o futuro é apenas o prelúdio de uma navegação ainda mais profunda pelos vastos domínios do ser.
Referências e Influências Filosóficas Subjacentes aos Argumentos:
Platonismo/Alegoria da Caverna: A ideia de que nossa percepção é limitada e nos dá apenas “sombras” da realidade verdadeira (o “real absoluto” que não percebemos completamente) é um eco direto da Alegoria da Caverna de Platão. A distinção entre “aparência e realidade” é central aqui.
Immanuel Kant (Fenômeno e Noumeno): A distinção entre “formas de percepção do que existe” e o “real absoluto” que “supera nossa capacidade perceptiva” remete fortemente à filosofia de Kant. O “fenômeno” seria o mundo como ele aparece para nós (nossa percepção), enquanto o “noumeno” seria a coisa em si, a realidade independente de nossa percepção, que para Kant é incognoscível.
Filosofia da Mente e Consciência: A reflexão sobre a mente, o intelecto e a consciência como elementos dentro da realidade, e a capacidade da mente de “simular” a realidade e conceber-se “fora” dela, tocam em questões centrais da filosofia da mente contemporânea, incluindo debates sobre a natureza da consciência, a auto-referencialidade e a relação mente-corpo.
Metafísica e Ontologia: A discussão sobre se a realidade possui “camadas” ou é “global” e “absoluta” é fundamentalmente metafísica e ontológica, investigando a natureza fundamental do ser e da existência. A afirmação de que “o real é absoluto” é uma tese ontológica forte.
Epistemologia: Os parágrafos que discutem “como nossa percepção se desenvolveu” e “o escopo de nossa percepção” são de natureza epistemológica, tratando da natureza, origem e limites do conhecimento humano.
Teorias da Causalidade: A análise da causalidade como uma construção de nossa mente para interpretar conexões e a projeção dessa causalidade sobre o desconhecido (incluindo a ideia de divindade) dialoga com Hume e outros empiristas que questionaram a natureza da causalidade como uma propriedade intrínseca do mundo, vendo-a mais como um hábito mental.
Filosofia da Ciência: A menção ao “desenvolvimento do intelecto” e à “ampliação do escopo de nossa percepção sobre a realidade” através da ciência e da tecnologia (revolução científica, computação, IA) alinha-se com a filosofia da ciência, que estuda como o conhecimento científico avança e transforma nossa compreensão do mundo.
Física e Filosofia do Tempo: A exploração do tempo como uma dimensão “navegável” e a ideia de que “o passado e o futuro não desaparecem no ato presente”, mas são “topologias” da realidade que a mente pode explorar, remetem a conceitos da física teórica (como a teoria da relatividade, que concebe o espaço-tempo como uma entidade quadridimensional) e discussões filosóficas sobre a natureza do tempo (presentismo, eternalismo).
Perspectivismo (em certa medida): A ideia de que “alguns seres percebem diferentes faixas do espectro eletromagnético” e outros usam o som, mas todos “habitam a realidade”, sugere um tipo de perspectivismo — a ideia de que a realidade é percebida de maneiras diferentes dependendo da perspectiva do observador, sem que isso invalide a realidade em si.
Filosofia da Religião/Teologia: A interpretação dos deuses como “expressão simbólica de nossa mente” e a análise do monoteísmo como uma projeção da causalidade sobre o desconhecido é um exercício de filosofia da religião, buscando compreender a origem e o significado das crenças religiosas a partir de uma perspectiva racional e antropológica.
Por patrinutri
Tudo isto nos faz cada vez menores diante deste imenso universo. Talvez a grande lição desta reflexão seja assumir um modo de vida mais baseado na humildade e na pureza de sentimentos, estes sim tão nossos e verdadeiros.
Obrigada por compartilhar esta reflexão tão profunda!