Auto-antropologia e escrevivência

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Talvez por fazer parte de um perfil que não é considerado um recorte, mas uma referência (equivocada) do todo (homem, branco, heterosexual, com formação acadêmica), nunca tenha me passado pela cabeça a possibilidade de ser eu mesmo o objeto de um estudo antropológico. Que dirá ser eu o objeto do meu próprio estudo antropológico. Mas isso faz todo o sentido, mesmo para alguém que carrega em sua história a própria ordem vigente (por ser, como já disse, um homem, branco e heterosexual…).

Foi isso que aprendi com a última aula ministrada no curso on-line “Epistemologias e Metodologias Negras, Descoloniais e Antirracistas”, organizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas É’LÉÉKO, da Universidade Federal de Pelotas. A aula ministrada por Aline de Moura Rodrigues foi veiculada no dia 10/09/2020 e trouxe como tema “Potências auto-antropológicas: reflexões de uma estudante negra sobre teorias antropológicas contemporâneas” (e pode ser conferida aqui https://www.youtube.com/watch?v=L0H-n-gmsXE).

Durante mais de uma hora e meia, Aline abordou a sua trajetória de “escrevivência”, como ela mesma chama, construída na interface entre as inquietações da sua própria vida enquanto mulher negra, e os debates promovidos no Departamento de Antropologia da UFRGS, no curso de Ciências Sociais. Aliás, não por acaso, os próprios subtítulos do trabalho de Aline estão sob a alcunha de “inquietações”. Inquietações calcadas entre a trajetória acadêmica e de vida, se misturando o tempo todo. Como um bom exemplo disso, Aline cita como uma das referências do trabalho antropológico, sua mãe, mulher negra que trabalhou por muitos anos em “casas de família”. À mãe Aline faz menção como uma referência metodológica e uma inspiração para ser um ser potencialmente antropológico.

Nessa trajetória para galgar um lugar de observadora científica também de si própria, Aline menciona um evento chave: romper com o silêncio. Aliás, não apenas romper com o silêncio que foi subjetivado na população negra e em especial nas mulheres negras, mas também cartografar, investigar, analisar esse silêncio. Transformá-lo em objeto de estudo. Em certa altura Aline diz “tudo que nos afeta pode ser questionado”, e nesse “tudo” ocupa papel de destaque a construção do silêncio enquanto prática repressiva típica do machismo, do racismo, da homofobia e também da colonialidade. Inclusive Aline defende a necessidade de romper com a colonialidade promovendo o que ela apresenta como “descolonialidade radical”: é preciso reiventar metodologias para produzir pesquisa, conhecimento e ciência, mas também reiventar metodologias de existir. E tudo isso vai impactar profundamente na tentativa de pensar uma nova formação do ser antropólogo, baseada também em um processo auto-antropológico. Afinal, como diz Aline, “a antropologia e a etnografia não são feitas para mim, mas são feitas comigo”.

Na “inquietação II”, Aline é bastante didática ao explicar: “dos aprendizados e dos constantes embates que movimentam essa caminhada de graduar-me em Ciências Sociais, parece latente que o que busco é justamente ser uma antropóloga que consiga lidar com a auto-antropologia que a alteridade branca, masculina, heteronormativa do meio universitário impõe ao meu caminho.” Não por acaso a “inquietação II” tem como título “o que me faz estar antropóloga: a etnografia ou as inflexões da alteridade?”

E ainda nem falei sobre a menção que Aline faz à referências eurocêntricas antiquadas. Dada a densidade que Aline mostra estar presente na possibilidade de trazer toda a sua própria experiência como um elemento constitutivo da sua pesquisa antropológica, se desvenciliar de uma base teórica eurocêntrica e deslocada das nossas realidades parece até secundário. Além disso, outro ponto de destaque para a cientista é a necessidade de se pensar no que ela chama de “lugar de escuta”, um ponto fundamental localizado entre o silêncio e o lugar de fala. Afinal, se nossas próprias escritas nos movem, geram inquietações e reencontros, também o fazem em quem lê, escuta ou assiste.