Cannabis e Saúde Coletiva (Introdução)
Atualmente temos em vigor no Brasil a Lei n. 11.343/2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) (Fluxograma 1) cuja função segundo o texto oficial é: “prescrever medidas de prevenção de uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas”; além de prever a conduta por porte de drogas para consumo no Art. 28, também tipifica o crime de tráfico de drogas entre outros, no Art. 33.
Fluxograma 1 – Órgãos que atuam diretamente ou contribuem para a execução da Política Nacional sobre Drogas integram o SISNAD
Fonte: Composição do SISNAD.
Segundo o Observatório das desigualdades no texto: Mulheres na cadeia: crescimento populacional e questões de gênero, após a implementação desta lei (11.343/06) a curva de encarceramento tem apresentado crescimento vertiginoso que se mantém até dias atuais. De 2000 a 2020 houve crescimento de 600% na população carcerária feminina e 500% na masculina, e destes 57,76% e 31,23%, respectivamente, são encarceramentos decorrentes da Lei de Drogas.
Gráfico 1 – Aprisionamento feminino (valores em milhar) – 2000-2020
Fonte: SISDEPEN, apud Observatório das Desigualdades.
Compreendendo a questão da perpetuação das ilicitudes como locupletação do dispositivo de modo deliberado para manutenção de percepções que culminam na retirada do cuidado dos usuários da saúde e relega a vida destes pacientes à políticas de “segurança”, inicia-se o desejo de racionalização desta questão específica. O cuidado na perspectiva da Saúde Coletiva e a necessidade urgente de interrupção de políticas que perpetuam mortes objetiva e subjetivamente pela não aceitação de epistemologias negras e não eurocentricas.
Ao investigar os primórdios do atual posicionamento médico, político e social acerca da questão das substâncias psicoativas, se compreende uma construção sistemática, ativa, plástica e bem estabelecida que se extende até os dias atuais.
Entendendo a utilização da biopolítica para a perpetuação de um projeto de necropolítica e aversão as concepções de outros conhecimentos e epistemologias como dignas e legitimas. A epistemologia eurocentrada permanece até os dias atuais fomentando o epistemicídio como modo de perpetuação da supremacia branca no mundo globalizado pós colonial, do qual o Brasil é pilar. Cujo objetivo não verbalizado atualmente, mas já muito bem descrito é: o epistemicídio e o fim das “alteridades”. (Brasil, 1958)
Partindo do pressuposto de um Cuidado Ampliado em Saúde o paciente figura como detentor de saberes e portanto, necessariamente uma voz ativa na construção do seu cuidado, através da Clínica Ampliada, apartir de sua autonomia, protagonismo e empoderamento, não podendo portanto ser silenciado em suas concepções, compreensões e conhecimentos, e ainda, uma potência de transformação de conceitos estabelecidos por pontos de vista distanciados das necessidades reais.
A análise da interseccionalidade das questões: Saúde Coletiva, Cannabis e Guerra às Drogas nos evidencia a existência de um viés eurocêntrico que pelo alcance de sua reprodução nos leva a onerosas consequências para o ente público, ainda maiores quando consideramos as perdas de vidas humanas e a função de limitação desta política no acesso a direitos fundamentais às pessoas vulnerabilizadas sobre o território Brasileiro, como é: o direito à Saúde, liberdade, segurança e à vida.
“Procuremos defender ester infelizes como defendemos a criança do mal que ameaça sua ignorância” (Prefácio da 2a ed, Brasil, 1958)
Na Constituição Federal de 1988, a também conhecida como “Constituição cidadã”, lemos em fragmentos do texto: nos Art. 6º “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” e Art. 196o “Saúde é direito de todos e dever do Estado…” (BRASIL, 1988, grifo meu).
Porém também lemos na Constituição de 1934, no artigo 138: Incube à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: … b) estimular a educação eugênica;”
Em 2021 o número de mortes decorrentes de ações policiais foi de 3.290 pessoas no Brasil, portanto 9 pessoas por dia, aproximadamente 1 a cada 2h e 30min e que mesmo havendo leve decréscimo nestas mortes de 2020 para 2021, houve no total um aumento da mortalidade entre homens negros e diminuição entre homens brancos.
Já está amplamente estudado e estabelecido que o atual modelo proibicionista adotado no Brasil é perepetuação de política eugênica através de seus resultados e modus operandi, à análise de especialistas é a pior política de drogas do mundo (Global Drug Policy Index, 2021, grifo meu). Esta política tem suas raízes fincadas em teorias esteadas no racismo científico (BRASIL, 1958), sustentadas pelo poder biomédico e jurídico e que há 100 anos vem sendo perpetuada de maneira exaustiva e sistemática pelo uso de uma narrativa, através da semiótica, por uso da imagética e que suporta o extermínio de parte da população “indesejada” determinada pela cor da pele, crença, gênero e classe social. (RYBKA; NASCIMENTO; GUZZO, 2018)
Especialistas em abuso de substâncias têm feito estudos para ampliar a compreensão da nocividade das substâncias lícitas e ilícitas e chegado a conclusões de que a Cannabis é mais segura que o álcool, menos letal, não causando dependência física ou abstinência à sua privação e que as atuais leis de drogas não têm correlação com o grau de danos causados pelas substâncias, (BONNET et al, 2020; TAYLOR et al, 2012, grifo meu) mas com questões que foram determinadas, estabelecidas e engendradas para a manutenção da supremacia branca (BRASIL, 1958) e não para a garantia de uma Saúde Pública democrática.
“Nunca observamos crises de abstinência nos viciados internados no Hospital ‘Juliano Moreira’. A Comissão Estadunidense, que tão bem estudou a marihuana, chegou à conclusão de que a maconha, seja qual for o estado mental do fumante, não provoca aquela necessidade imperiosa, aquela falta relatada pelos morfinômanos, por exemplo.” (Brasil, 1958, p.348).
Como descrito por Jairnilson Paim (ROUQUAYROL, 2003):
Política de Saúde no discurso oficial pode significar diretrizes e planos de ação, porém, enquanto disciplina acadêmica do campo da Saúde Coletiva, abrange tanto o estudo das relações e do exercício de poder, como também a formulação e a condução de políticas de saúde.
Objetivando-se redução das disparidades e iniquidades tanto no acesso a cuidados de saúde como nos desfechos desfavoráveis para as populações não brancas no Brasil resultante da atual política pública de drogas, emerge a centralidade da questão do uso de substâncias na tomada de decisões nas esferas de gestão para a modificação da atual compreensão social fruto de uma construção exaustiva, para um olhar em Cuidado de Saúde Ampliado, ativo e não permissivo às incongruências. Suely Deslandes (MINAYO, 2006) afirma:
Quanto à ‘prevenção’, a literatura da década de 1990 é veemente na crítica aos modelos centrados na vertente da ‘guerra às drogas’, no paradigma de ‘redução da oferta’, cujos mecanismos repressivos, estigmatizadores, criminalizadores e calcados na lógica policial têm se revelado amplamente ineficazes e responsáveis por incrementar mais ainda as situações de violência, especialmente contra os usuários… seja ‘demonizando’ as drogas ilícitas e seus usuários, seja omitindo os muitos efeitos deletérios à saúde que as drogas lícitas causam, especialmente as bebidas alcóolicas, o tabaco, vários medicamentos vendidos sem controle médico e com controle médico.
Ainda na atualidade há uma questão de suma importância que é incipientemente problematizada pelos estudiosos do campo da saúde coletiva: onde há “ausência” das políticas de saúde, (na verdade existe uma entrega deliberada, descrita na Portaria 344/98 ao ‘poder policial’) haverá o preenchimento por outros poderes.
Cuidemos em avançar sobre as ruinas das ideias eugenistas que se reestruturam plastica e toscamente ante nossos olhos. A necessidade da aceitação às epistemologias negra e indígena como fundamentais dentro deste tão plural território é crítica, pungente e urgente.
Estamos em 2023 e até hoje, ainda não foi reconhecido o genocídio negro em curso há 500 anos sobre o território nacional brasileiro, reconhecimento este, necessário para o inicio de uma compreensão humana, de interrupção a priori, todavia que priorize os historicamente vulnerabilizados, sendo ponto de partida às tão necessárias reparações.
A maneira que se optou por iniciar esta conversa no Brasil revela muito de suas raizes eugênicas e portanto, devem ser problematizadas e analisadas criticamente. Não todos os usuários desta planta milenar de uso tradicional de epistemologia negra terá acesso à saúde, segurança e vida, direitos básicos, e esta negação de direitos é sistematicamente posta por questões de cor, classe social, gênero, entre outros. Sendo necessário portanto uma nova compreensão sobre os usuários e estes usos. Os negros não devem mais estar subalternizados no Brasil como se cidadãos de 2a classe fossem, o acesso aos direitos fundamentais são negados até 2023 a estes que foram “tornados cidadãos” em 1888, mas que tiveram todos os seus costumes criminalizados durante longos anos, destes, um que se perpetua até a atualidade é o uso da Cannabis sativa.
Direitos fundamentais, humanos, civis, trabalhistas, entre outros, devem ser estruturantes e estruturadores na vida das pessoas negras sobre território nacional. Ainda convivemos com o degredo perpetuado por políticas embasadas em sofismas, como é a atual política de drogas. A questão é: até quando?
Vivemos há 100 anos sob esta lógica higienista, sugiro a leitura e conhecimento do livro MACONHA, do Ministério da Saúde, (5o na lista das referências bibliográficas) onde no prefácio da 2a edição lê-se: ‘este é um ‘problema’ que está desafiando a nós todos (serviço nacional de educação sanitária) que cuidamos da EUGENIA da ‘raça’.‘
Referências bibliográficas:
BONNET, U.; SPECKA, M.; SOYKA, M. et al. Ranking the Harm of psychoactive Drugs Includind Prescription Analgesics to Users and Others – A Perspective of German Addiction Medicine Experts. Frontiers in Psychiatry, 11:592199. doi: 10.3389/fpsyt.2020.592199. 2012.
Brasil, Composição do SISNAD. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/politicas-sobre-drogas/subcapas-senad/composicao-do-sisnad-1 Acesso em: 05 de nov de 2023
______. Constituição (1934). Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm Acesso em: 05 de nov de 2023
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 05 de nov de 2023
______, Ministério da Saúde. MACONHA: Coletânea de trabalhos Brasileiros. 2a Edição Serviço Nacional de Educação Sanitária. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 1958. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/maconha_coletania_trabalhos_brasileiros_2ed.pdf Acesso em: 05 de nov de 2023
______, Observatório das desigualdades. Mulheres na cadeia: crescimento populacional e questões de gênero. Disponível em: http://observatoriodesigualdades.fjp.mg.gov.br/?p=1994 Acesso em: 10 jan. 2023.
MINAYO, M. C. S. et al.. Violência sob o Olhar da Saúde a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. 1a Reimpressão, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.
ROUQUAYROL, M. Z.; ALMEIDA FILHO, N. de. Epidemiologia e saúde. Rio de Janeiro: Medsi, 2003. p. 588-601
RYBKA, L. N.; NASCIMENTO, J. L.; GUZZO, R. S. L. Os mortos e feridos na “guerra às drogas”: uma crítica ao paradigma proibicionista. Estudos de Psicologia. Campinas 35(1), 99-109. Disponível em:
TAYLOR, M.; MACKAY, K.; MURPHY, J; et al. Quantifying the RR of harm to self and others from substance misuse: results from a survey of clinical experts across Scotland. BMJ Open. v.2, Artigo 4, 2012.
THE GLOBAL DRUG POLICY INDEX, 2021. Disponível em: encurtador.com.br/bgJMN. Acesso em: 10 jan. 2023.