Trago para esta rede uma bela reflexão sobre formas de cuidado e educação, apresentada no livro:
Concepções e proposições em Psicologia e Educação
A trajetória do Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Adriana Marcondes Machado
Ana Beatriz Coutinho Lerner
Paula Fontana Fonseca
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Quando ações reúnem áreas diversas e as faz colaborar entre si, nasce nessa fronteira um espaço para recriar mundos e abrir novas possibilidades. Considero que este trabalho é fruto dessa navegação conjunta e esforços coletivos de produção de vida e potência no fazer da clínica e da educação.
Copio aqui o precioso prefácio da publicação:
O Serviço de Psicologia Escolar e o sentido público da universidade
José Sérgio Fonseca de Carvalho
Há décadas que as universidades públicas paulistas têm professado seu compromisso com o princípio da indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão. Mas se o vínculo entre os dois primeiros já se encontra bastante consolidado e é frequentemente associado à excelência da formação de seus profissionais, o mesmo não ocorre com o terceiro. A maior parte das iniciativas neste âmbito se reduz à difusão das pesquisas realizadas para um público mais amplo e à prestação de serviços à população ou a algumas instituições. Os serviços universitários e a extensão cultural figuram-se, assim, quase como um apêndice das atividades acadêmicas, muitas vezes concebidas como um trabalho semiassistencial e marcado por um vetor único: da universidade para a sociedade.
A história do Serviço de Psicologia Escolar (SePE) – cujas conquistas, estudos, rupturas e continuidades formam a base sobre a qual se assenta esta obra – nos mostra, contudo, que esse não é um caminho inexorável nem a única forma de conceber os possíveis vínculos entre a universidade e as demandas sociais. Embora inicialmente vinculado a essa concepção cristalizada acerca do significado dos serviços de extensão cultural, o SePE foi progressivamente dela se distanciando, na medida em que passou a tomar as instituições escolares e suas práticas não somente como locais de aplicação de seus saberes, mas como objeto de pesquisa e oportunidade de formação. Trata-se de um movimento cuja importância não deve ser subestimada.
Do ponto de vista teórico, esse deslocamento refletiu e ali mentou uma nova forma de conceber o campo da Psicologia da Educação, deixando de ser a mera aplicação de teorias gerais do desenvolvimento humano ao âmbito escolar para ser concebida como um campo de investigação cujo objeto já não é somente a compreensão das estruturas psíquicas de um indivíduo, mas a presença de um sujeito de aprendizagem no quadro de uma relação contextualizada. Não se trata, pois, de diagnosticar supostas insuficiências ou dificuldades atribuídas a um indivíduo em decorrência de características pessoais ou sociais, mas de desvelar formas pelas quais se produzem relações, diagnósticos, estigmatizações e discursos acerca dos sujeitos implicados na relação educativa. Mas esse deslocamento não se restringe à emergência de uma nova perspectiva teórica. Ele atinge também a própria concepção da relação mantida pela universidade com outras instituições educativas. Não se trata mais de transferir um saber, prestar um serviço, fornecer algum tipo de diagnós tico ou técnica de intervenção. Trata-se, antes, de estabelecer um diálogo entre instituições que, a despeito de suas peculiaridades e diferenças, se lançam em uma tarefa comum.
As escolas – e posteriormente outras instituições vinculadas à formação – tornam-se objeto de atendimento e diálogo sistemáticos, cujos resultados são a produção e a disseminação de um conhecimento que compreende os sujeitos da aprendizagem e os responsáveis por seu acolhimento e formação, sendo analisados e assistidos como parte de uma complexa rede social. Por outro lado, suas experiências, dilemas e práticas são objeto de apresentação USP_PSIEDUC.indb 11 SP_PSIEDUC.indb 11 19/10/2017 15:37:11 9/10/2017 15:37:11 12
Concepções e proposições em Psicologia e Educação e reflexão, o que incentiva ambos os polos da relação – universidade e comunidade – a produzirem conhecimentos e saberes acerca de seus desafios, rompendo o pressuposto do serviço e da extensão como atividades de orientação unilateral, de mera disseminação de técnicas e saberes. As escolas se tornam, assim, uma modalidade específica de diálogo que a universidade estabelece com a sociedade, por meio de seus profissionais e estudantes. E aqui reside outro ponto de grande relevância na trajetória do SePE.
Ao longo de mais de duas décadas como professor dos cursos de licencia tura e pós-graduação, tive contato com dezenas de alunos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). De início, me surpreendia com a sensibilidade e o engajamento de muitos deles em relação aos problemas e desafios da escola pública e de outras instituições voltadas para a formação de jovens e crianças. Pouco a pouco fui me dando conta de que parte substancial desses alunos teve experiências diretas ou indiretas com os trabalhos realizados pelo SePE, o que patenteava a relevância desse serviço na formação de novos profissionais. Uma formação que associava a peculiaridade do olhar da Psicologia à concretude das instituições formativas e seus problemas. E aqui a indissociabilidade entre as
atividades de pesquisa, ensino e extensão fecha seu ciclo de fecundação mútua. Ao mesmo tempo que o SePE oferecia aos pesquisadores a possibilidade de expandir seus horizontes teóricos, facultava aos formandos a possibilidade de atuarem como profissionais em uma realidade social e política. Uma dinâmica que se nutre a partir da presença dialogada com as instituições educacionais e seus profissionais, constantemente chamados a refletirem acerca de seus dilemas e problemas.
Embora sumário, esse quadro que acabo de esboçar é suficiente para colocar em xeque a retórica, hoje dominante na alta burocracia da administração universitária, que pretende operar uma cisão rígida entre os fins precípuos da universidade – produção de conhecimentos e formação de profissionais – e os serviços que ela presta à comunidade e à sociedade, como se estes fossem dissociados dos primeiros. Um hospital universitário, uma creche ou um serviço de atendimento psicológico podem ser apenas um apêndice a suas atividades- fim, mas podem também representar a concretização de seus princípios professados de indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão. E a experiência do SePE deveria nos mostrar a relevância, a um só tempo, social, política, epistemológica e formativa de iniciativas
que rompam a segmentação entre esses campos de atuação da universidade.
Esta obra representa, assim, não apenas o registro de investigações e reflexões associadas ao percurso histórico do SePE. Ela atesta a possibilidade de uma prática universitária que alia qualidade de produção acadêmica e engajamento social; formação inicial e pesquisa; prestação de serviços, reconfiguração de campos epistemológicos e perspectivas de atuação. E, ao assim fazer, nos alerta para o perigo de persistir numa visão empobrecedora da atuação pública universitária, hoje empobrecedora, na medida em que reduz o ideal de uma experiência formativa à transmissão de conhecimentos e técnicas – na maior parte das vezes como meros protocolos abstratos! – incapazes de atribuir sentido a um percurso profissional e adequação ao mundo onde serão tecidos. Mais do que empobrecedora, essa
atuação reduz a vida intelectual aos ditames de uma razão instrumental que, embora seja de grande valia para produzir objetos, tem se mostrado inepta para compreender a constituição de sujeitos.
Relembrar esse velho truísmo talvez seja uma das grandes qualidades desta obra