Ana Clara Rodrigues de Oliveira¹
Acadêmica de Medicina da Universidade de Gurupi (UnirG)
A Comunidade Indígena é um exemplo cultural da paternidade partível, que corresponde, em uma aldeia cuja poligamia sexual é normalizada, à não relevância pragmática do (re)conhecimento da paternidade biológica, haja vista que o dever intrínseco de exercer a função social de pai já estava na condição valorativa (visão de mundo) do imaginário de um amor paternal coletivo. Ainda, no Brasil Colônia, a classificação de gênero na sociedade indígena fora construída conforme as funções sociais dentro da aldeia iam sendo estabelecidas, isto é, o arquétipo de homem ia sendo atribuível àquele/a que caçava e pescava, enquanto o da mulher, àquela/e que cuidava da casa e produzia artesanato. Portanto, o gênero daquelas sociedades indígenas podiam coincidir ou não com o sexo biológico deles, já que muitos poderiam transitar entre papeis femininos e masculinos ou mesmo invertê-los – a exemplo de “Tibira do Maranhão”, primeira vítima letal de homofobia no Brasil, registrada no início do século 17, por ser alvo de aberração “torpe, suja e desonesta” pela sociedade portuguesa e francesa da época colonial frente à sua postura irreverente perante à heteronormatividade). Assim, o controle da sexualidade indígena se tornou um dos objetos utilizados pela Coroa portuguesa para determinar a composição de seus súditos nativos no processo de colonização.
Em se tratando de uma causa econômica, o sistema capitalista cooperou para que a relação entre pessoas homossexuais fosse incômoda à manutenção do seu mercado consumidor para lucratividade, em virtude do não prosseguimento da geração de descendentes da normatividade sexual. Outro lado obscuro do sistema se deve à origem consecutiva de certa rivalidade homem-homem pela competição laboral, acabando por tornar mais tímida a aproximação relacional homoafetiva. Logo, a abordagem depreciativa da homofobia ficou tão estruturada nesse sistema, que em 1948, tal orientação sexual foi inserida na Classificação Internacional de Doenças (CID), tornando-se uma patologia (CID-6,17) e, mais adiante, em 1975 e em 1990, a identidade trans passou a ser classificada pela CID-9 e CID-10 como Desvio Sexual e Transtorno de Identidade de Gênero, respectivamente. Assim, terapias de conversão sexual se valeram de rudes vias psicológicas e físicas para tratar e curar os doentes. Hoje, tanto o Conselho Federal de Psicologia (1999), quanto o de Medicina (1985) desaprovam e, respaldados pela Lei 737/22, condenam tratamentos e protocolos que curam o “homossexualismo”.
Em razão do extremo grau de vulnerabilidade da população LGBTQIA+, há mais de uma década que o Brasil vem sendo, de modo grave, o primeiro país, em número absoluto, e o quarto, em termos relativos, com maior taxa de óbito pelos trans, resultando numa redução da expectativa de vida a apenas 35 anos, em média, o que significa menos da metade daquela obtida pela população geral. O Hospital das Clínicas da USP, reparando tal estatística, acompanha atualmente 380 pessoas do grupo de maneira acolhedora, oferecendo procedimentos múltiplos com o intuito de aliviar os sofrimentos que as permeiam, sejam crianças em sessões de terapia, sejam adolescentes e adultos em bloqueios hormonais reversíveis. O SUS, de igual modo, regulamentado pela Portaria no 2.803/13, passou a oferecer gratuitamente o processo transexualizador por ações e serviços de saúde – como o acompanhamento multiprofissional endocrinológico, psicoterapêutico, a hormonioterapia e as cirurgias de resignação sexual, ainda que com números limitados de oportunidade. Constituindo em mais que 2% da população brasileira, a população trans, junto com a não binária, sendo a mais marginalizada – e, por isso, alvo importante do exercício da humanização – merece um olhar diferencial na condução do atendimento em saúde, principalmente se existir a Disforia de Gênero (sofrimento clinicamente significativo decorrente da incongruência entre o sexo expresso e o sexo atribuído ao nascimento), que deve ser de extrema complexidade no ajuste vocabular durante o diálogo e na devida compressão do público transgênero, sobretudo. Para conhecer esse grupo, entretanto, é necessário também o seu reconhecimento, seja pelo respeito à aplicação do nome social/pronome adequado, seja pelo modo expressivo da abordagem como ferramenta do cuidado diverso dentro do serviço de saúde. Frases de acolhimento como “Como eu posso lhe ajudar hoje?” e “Como posso lhe chamar?” são exemplos para se oportunizar um aumento quantitativo de atendimentos a esse público, já que pouco procura ajuda médica, servindo, ainda mais, como uma estratégia de preenchimento de outras demandas paralelas de educação em saúde. O modo holístico da abordagem, por fim, fará aproximar, cada dia mais, o cuidado humanizado da democratização do acesso à saúde requerido ao público GBTQIA +.