Diabetes na “Porta dos Fundos”: a relevância da hipoglicemia e o humor irrelevante

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No último dia 09/08/18, um vídeo do portal humorístico “Porta dos Fundos” satirizando celebridades do YouTube que fazem qualquer coisa pra atrair a atenção do público gerou polêmica nas redes sociais. Na esquete “Youtuber” um rapaz executa o desafio de tomar insulina para experimentar os efeitos do medicamento, sugerindo ser possível a aplicação em colegas de escola. O vídeo termina com o garoto, interpretado pelo ator Gregorio Duvivier, desmaiado (ou morto, como preferir o espectador) após uma crise hipoglicêmica grave, não sem antes anunciar que no próximo episódio cortaria a perna para mostrar como pessoas com neuropatia diabética tem seus membros amputados.

A sátira não foi bem recebida na comunidade profissional médica e de pessoas com diabetes: notas de repúdio foram publicadas pela Sociedade Brasileira de Diabetes, que ressaltou a exclusão social dos portadores da doença em função de preconceitos como os disseminados pelo vídeo, e pela Associação de Diabetes Juvenil, que manifestou preocupação com a disseminação de informações errôneas sobre um problema grave de saúde pública como o diabetes. Ainda, uma carta subscrita por 36 blogueiros e ativistas de diabetes foi espalhada pelas redes sociais afirmando o prejuízo causado pelo vídeo ao trabalho desenvolvido para compartilhar informações e conhecimentos sobre os cuidados e experiências de convívio com a condição para a conquista da autonomia e da saúde dos pacientes que lutam diariamente em defesa de seus direitos e por uma vida melhor.

O vídeo em si é como outro qualquer do Porta dos Fundos, com uma abordagem rasteira e sem graça de um assunto sério, típica de caçadores de polêmicas sem capacidade de criar piadas realmente engraçadas e inteligentes. Mas trouxe à tona uma questão importante para portadores e cuidadores de pessoas com diabetes, muitas vezes considerada menos relevante nas discussões clínicas e nas avaliações de políticas públicas de saúde: a hipoglicemia como fator determinante da qualidade de vida das pessoas com diabetes.

Nos meus 32 anos de convívio com o diabetes, boa parte dos profissionais de saúde com que me tratei, tanto na rede privada quanto na rede pública de saúde, direcionava a construção do cuidado para evitar a elevação permanente da glicemia, baseando-se nos resultados do exame de hemoglobina glicada (aferição da média glicêmica dos últimos 3 meses), “padrão ouro”, considerado como o desfecho mais importante na avaliação de tecnologias em saúde para pessoas com diabetes. De fato, níveis glicêmicos constantemente elevados colocam em risco a vida e a saúde de quem tem diabetes e podem provocar o surgimento de inúmeras complicações micro e macro vasculares, e afetar olhos, rins, membros, coração e outros órgãos do portador da doença. Mas na vida prática cotidiana de quem tem diabetes, o que atrapalha mesmo o desenvolvimento regular das nossas atividades é a hipoglicemia, em função de sintomas como suores frios, tremores, tontura, fraqueza, irritação e dificuldades cognitivas.

Certa vez um amigo médico me questionou pois, enquanto os colegas de profissão ressaltavam os riscos da hiperglicemia, como ele também aprendera na faculdade de medicina ao estudar diabetes, eu só falava em hipoglicemia. Respondi a ele brincando que, no cuidado em diabetes, hiperglicemia é preocupação de endocrinologista, enquanto a preocupação do paciente e de quem convive com ele é a hipoglicemia. O certo mesmo é que elevação e queda da glicemia preocupam tanto médicos quanto portadores de diabetes, mas talvez haja uma inversão (ou equalização) de relevância a partir da experiência prática com a doença e seus sintomas característicos.

Os percalços por que passam as pessoas com diabetes em função das quedas glicêmicas já foi há muito tempo compreendida pela indústria farmacêutica. Basta observar as ofertas de tecnologias para o cuidado em diabetes, praticamente todos os novos produtos são vendidos no mercado sob a promessa de redução do número de hipoglicemias, ou seja, as farmacêuticas sabem muito bem o que seus consumidores consideram relevante para conquistar qualidade de vida.

E o SUS? Em 2016, em relatório preliminar submetido a consulta pública, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (CONITEC) do Ministério da Saúde considerou a hipoglicemia como desfecho menor ao avaliar a inclusão de análogos de ação rápida para tratamento de diabetes tipo 1 pelo sistema público de saúde. Após as contribuições da sociedade (a maior parte delas de pacientes e cuidadores) relatando os inúmeros problemas com a hipoglicemia bem como a redução dos episódios com o uso da tecnologia analisada, a despeito das evidências científicas não indicarem redução dos níveis de hemoglobina glicada, os análogos de ação rápida foram incorporados ao SUS. Na avaliação seguinte para estudo da oferta de tratamento com bomba de insulina pelo SUS, a hipoglicemia apareceu no relatório da CONITEC como um desfecho tão relevante quanto a hemoglobina glicada.

Isso mostra a importância de se observar as experiências práticas dos usuários no convívio com o processo saúde/doença, e como a escuta dos saberes desenvolvidas por quem vive com diabetes como legítimos conhecimentos pode contribuir para a construção de uma política pública mais adequada às necessidades de saúde desta população. Mas na sociedade do conhecimento científico, que valoriza apenas os saberes técnicos, a importância da hipoglicemia na vida das pessoas com diabetes só se fez presente pela “porta dos fundos”, após muita luta dos pacientes pelo reconhecimento da legitimidade de seus conhecimentos práticos, que mostram como é problemático viver com quedas glicêmicas constantes.

Quanto ao vídeo do Porta dos Fundos, apesar dos milhões de seguidores do canal, é uma produção totalmente irrelevante no cenário cultural e social brasileiro.

Em tempo: apesar dos análogos de ação rápida terem sido incorporados ao SUS em fevereiro de 2017, ultrapassado o prazo de 180 dias para oferta na rede pública de saúde (artigo 25, do Decreto nº 7.646/2011) há um ano, os portadores de diabetes tipo 1 ainda não estão recebendo o medicamento pelo SUS.