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Relações humanas não podem ser reduzidas a trocas num mercado livre: Um pouco de David Graeber e David Wengrow
Articulando os conceitos
A ideia central do Capitalismo pode ser expressa numa fórmula muito simples: se você cuidar apenas de um aspecto da realidade – o seu suposto interesse pessoal – todo o resto, milagrosamente, se ajeita. Entretanto, cuidar de uma única coisa, seja o que for, é algo que qualquer mãe tem como o roteiro seguro para a desgraça. Além disso, se existe algo composto de inúmeras e misteriosas partes é precisamente a multiplicidade complexa que designamos como auto interesse.
Reduzir as relações humanas ao cálculo racional na busca perpétua da maior vantagem com o menor custo, consiste em conceber que um copo de água e o oceano são a mesma coisa: dois recipientes com o mesmo conteúdo. Não é porque temos interesse em vantagens que todo restante da existência está derivando disso ou responde a esse aspecto de nosso comportamento.
Esse é um mito. Ninguém reduz sua existência à reprodução do capital. Embora seja a isso que, aparentemente, dedicamos tudo o que fazemos, o que, de fato, fazemos é muito mais do que perseguir o valor na sua forma monetária. É como se, porque alguns podem planar um pouco fora d’água, que voar fosse da natureza de todos os peixes.
Ou seja, porque menos de um por cento da humanidade tem milhões de dólares e um milionésimo desses, tem bilhões e até trilhões, o restante deve viver suas vidas como se sua natureza fosse unicamente tentar ter o máximo possível de dinheiro. Ninguém acredita nisso realmente, mas nos organizamos social e economicamente segundo essas máximas míticas.
O que de fato está acontecendo – de modo cada vez mais intenso nos últimos séculos, especialmente na cultura ocidental, inclusive no aspecto dela que se globalizou, é que nossa sociedade se tornou muito pobre na auto representação que formulamos, no contexto do capitalismo.
Já fomos muito mais criativos e livres nesse aspecto, especialmente, no período de centenas de milhares de anos antes do desenvolvimento da agricultura. É isso que a antropologia dos vestígios e dos poucos remanescentes dos caçadores coletores, que ainda habitam o planeta, está demonstrando. Do mesmo modo, achados arqueológicos da era anterior à agricultura, estão mostrando a sofisticação dos povos humanos nos cerca de 190 mil anos anteriores à agricultura.
Há cerca de 200 mil anos somos humanos. Não há uma distinção evolutiva no sentido de existir uma forma de vida primitiva ou menos desenvolvida cognitivamente, nesse período. O desenvolvimento tecnológico não se equipara ao desenvolvimento cognitivo. Seres humanos que fazem registros escritos ou que seguem tradições baseadas em feitos de memória e oralidade não são qualitativamente diferentes. Antes, desenvolvem habilidades diferentes com seus equivalentes sistemas neurocognitivos.
Assim, o prazer de fazer e estar na existência de modo solidário e compartilhado é a forma ancestral e atual do que o “comunismo” realmente é. Ninguém, no mundo do trabalho, quando ouve um colega dizer “me alcança o martelo”, se pergunta “mas o que eu ganho com isso”. Não existiria produção no chão de fábrica, a despeito de toda hierarquia e autoridade implícita ao processo de produção fabril, se o interesse comum não fosse capaz de otimizar o esforço de produção dos trabalhadores na seguinte lógica: “de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades”.
Na verdade, ser humano implica em um constante “comunismo pragmático”, dado que a vida é uma coleção de momentos de redução da impotência, desde a máxima vulnerabilidade, na infância, até uma relativa autonomia, sempre movida a diferentes intensidades de colaboração e solidariedade, até o retorno paulatino a incapacidade e a dependência crescente na velhice.
Se tudo nas relações humanas pudesse ser reduzido ao interesse de trocas num ambiente livre de obstáculos – o mercado – muito do que se percebe como inerentemente humano não encontraria lugar.
No caso, nas relações familiares, quitar uma relação em termos exatos, como no caso de um contrato comercial, em que se estipula um preço matematicamente calculado, é absurdo. Compromissos mútuos não podem ser tratados como dívidas monetárias. Mas isso contamina toda a esfera dos assuntos humanos, inclusive mitos e teologias.
Não podemos estar em relação de dívida, em termos contábeis, com nossos criadores, com o criador ou nossos soberanos. Nem em relação aos nossos pais o sentido da dívida monetária, que pode ser quitada, faz sentido. Poderíamos pensar no seguinte: O que significaria um pai tabular exatamente os custos de criar seu filho e apresentar a ele, após ele ser adulto, a cobrança desse valor monetário?
Relações de troca, num mercado de bens de consumo, implicam numa impessoalidade que é rara nas relações humanas. Mesmo em relações comerciais a cordialidade ou a simulação da amizade entre compradores e vendedores é essencial ou mesmo autêntica. Nas compras online, operadas por “inteligência artificial”, as demonstrações afetivas são programadas em regra e não faz sentido que parecessem ser impessoais, como de fato o são, por definição.
Não importa aqui o arranjo ideológico. Há um mundo fora da mente humana. Nessa realidade mais ampla, nosso cérebro é uma parte. Não importa o quanto ele seja capaz de imaginar. Coisas acontecem, coisas são feitas. e da análise disso, não se pode concluir que tudo, mesmo Deus, seja reduzido a contabilidade monetária das relações.
A pergunta sempre ignorada por quem diz que somos governados por nossos interesses é a gênese dos mesmos. É certo que indivíduos agem segundo seus desejos e impulsos, mas a matéria prima de desejos e impulsos é processada a partir do ambiente e no contexto das relações sociais e ecológicas interespecíficas e intraespecíficas.
Por Matthew Ortiz
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