Entre metamorfoses: da barata à borboleta

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“O Brasil é um caboclo sem dinheiro/ Procurando o doutor nalgum lugar/ Ou será o professor Darcy Ribeiro/ Que fugiu do hospital pra se tratar?” A canção de Celso Viáfora e Vicente Barreto, imortalizada na voz de Ney Matogrosso, introduz e acompanha, em tom de metáfora e provocação, nossa passagem pelo CAPS Casa Verde, em Maceió-AL.

Eu, Ítalo David, e Aldo Oliveira, acadêmicos de medicina do 9º período da Universidade Federal de Alagoas, finalizamos o rodízio em saúde mental, durante o qual ficamos 1 mês e meio tendo maior contato com os serviços de psiquiatria e saúde mental do estado, incluindo os CAPS, sob a supervisão do professor Sérgio Aragaki.

Os CAPS desempenham um papel central na mudança de paradigma em saúde mental, afastando-se de abordagens segregadoras em direção a práticas mais inclusivas, respeitosas e humanizadas. Eles representam a concretização dos princípios fundamentais da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e consciente no que diz respeito à saúde mental. Mesmo que sem a amplificação necessária, os CAPS são uma grande conquista para a antimanicomialização da saúde mental no Brasil.

O curso médico nos molda a desenvolver um raciocínio que traduz sinais e sintomas em patologias, o que, claro, é necessário ao aprimoramento do fazer médico. Experimentamos a pressa por fortalecer tais competências não só em horário comercial. A casa vira uma extensão da faculdade; no instagram, aumentam as páginas voltadas a conteúdos médicos; as rodinhas com os amigos são permeadas por casos clínicos interessantes vistos durante a semana… Estamos em sintonia com o cliniquês, com o cérebro acelerado a procurar sinais para encontrar CIDs. Contudo, viver esse um mês e meio sentindo a realidade do CAPS Casa Verde desacelerou o pensamento, ávido pelo sintoma, fazendo o olhar (que tanto quer ser) médico, tornar-se tão somente mais um, normal quanto qualquer outro, enxergando não os critérios do DSM; mas a pessoa – nesse momento – tão não médica quanto eu.

E é justamente a capacidade de ser tão simples e comum que torna os CAPS tão interessantes. O lugar parece uma casa; os usuários, residentes, e os funcionários, tão residentes quanto. A vida parece voltar à normalidade – tão distante de quando antes só se via o discurso desorganizado, o humor afetado, a mente partida. Tão diferente também do que se vê nos corredores de um hospital psiquiátrico. Então, caros leitores, não sei vocês, mas também entendo o professor Darcy Ribeiro.

Essa forma de ser, porém, tem um intensivo e cuidadoso plano feito pelos profissionais que compõem o CAPS, afinal fugir do tratamento manicomial não significa fazer atividades que apenas ocupem o tempo do participante. As ações têm propósitos bem estabelecidos. Entre elas, nós pudemos conhecer o brechó Mãos Unidas, a oficina Sonhos, Artes e Bordados e a Oficina de Panificação, que mostram aos usuários suas capacidades, além de desenvolver ou aprimorar habilidades – atitudes esquecidas quando o centro das atenções tornou-se a doença, e a pessoa, de uma hora para outra, passa a se transformar em doente. Essa metamorfose me parece ser uma das mais difíceis. É como aconteceu com Gregor Samsa, no livro de Franz Kafka, que certa manhã acordou de sonhos intranquilos e encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.

Veja, dadas as devidas proporções, não é diferente com o paciente que convive com uma doença psiquiátrica. O olhar para a condição, o medo, a estranheza, o novo… Por muitos momentos, durante o estágio, eu me imaginei nessa situação, de forma metafórica, e tentei imaginar o que sentiria estando naquele lugar. Não cheguei a uma conclusão firmada, mas certamente me sentiria acolhido, me perceberia menos barata e mais gente.

Outras atividades que me marcaram foram a Oficina da Beleza e as rodas de conversa. A primeira, porque foi uma forma muito bem pensada de tentar devolver o que a doença tira dos usuários, o autocuidado. Nós pudemos doar nosso tempo e nossas amadoras habilidades embelezadoras – tão automáticas para nós – e levantar a reflexão sobre a necessidade do autocuidado mediante os sentimentos alcançados durante a atividade. É de se esperar que ter se sentido bem sendo cuidado estimule a prática em si mesmo.

Sem sombra de dúvida, a atividade que mais me encantou foram as rodas de conversa. Foi muito gratificante conhecer a história daqueles usuários, que muitas vezes deixavam transparecer sua vulnerabilidade sem nem precisar dizer tanto. As histórias eram ouvidas, os sentimentos compartilhados entre os participantes, que davam conselhos uns aos outros e construíam um novo significado, muitas vezes para tanto sofrimento, angústia e temor. Eles eram a vida como ela é.

E isso, claro, despertava sentimentos em quem ouvia. Uma vez, ouvindo um dos relatos escrevi num papel, algo que chamei de Escafandro Psiquiátrico: A tristeza já não parecia mais ser pelo diagnóstico firmado. Era como se tivesse se instalado a infelicidade de ser quem se é, ou melhor, quem veio a ser. Já não se reconhecia mais. Quando o ser passado morreu? Ou estaria aprisionado? Um fato estava claro: dói como uma dor física se procurar no vazio. Não ter controle sobre quem se é, é a pior morte que há em vida.

Como havia dito, é a vida real. Nem sempre é fácil não se perceber monstruoso. Nesse mesmo dia, no entanto, todos os outros usuários apoiaram quem inspirou o relato. No fim, eu aprendi que, a passos lentos, a metamorfose invariavelmente acontece, mas muda de figura. Felizmente, quem acompanha o trabalho de perto, vê que se vão as baratas e os escafandros e ficam as borboletas.