Espinosa – notas e reflexões: uma volta à afirmação da vida.

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Antes de tudo, o pensamento é involuntário. Ele é uma forma que o corpo humano encontra para “ser” humano. O conteúdo dessa humanidade potencial depende da forma de pensar. E o pensamento se dá por associação de imagens, de modo a formar uma concepção de mundo que é singular e sempre em expansão, na medida em que temos novos encontros.

Desse modo, o que chamamos de imanência não está no conteúdo. As ideias não são entes ou coisas. As idéias correspondem ao próprio processo do pensamento de forma dinâmica. Imanência, portanto, se refere a uma condição em fluxo e não a um conceito como o idealismo platônico, a “verdade” ou o “saber” como algo dado e concluído.

O mundo não é descrito, mas sim concebido, de modo seminal, gestacional, em nossas ideias, a partir da associação entre imagens conhecidas e novas imagens que vão surgindo na medida em que a vida vai acontecendo. O mundo é real do ponto de vista dos encontros e, também, concebido de modo singular em cada corpo-mente que se vê no encontro com o mundo.

Assim, a verdadeira imanência é um processo e não uma descrição. Se fosse assim, uma descrição ou objeto, a imanência se tornaria uma espécie de ideal. Um conceito deslocado da zona comum dos encontros, uma verdade transcendente, desse modo, consiste numa ideia miragem – em  uma ilusão.

O real é uma substância única da qual nós somos uma modificação constante.

As coisas e os pensamentos têm a mesma substância. Qualquer coisa singular é uma modificação dessa substância única. A mente humana é uma modificação do atributo pensamento.  Somos, de acordo com Espinosa, um corpo e sua ideia: “a ideia da ideia do corpo”.

O corpo é, então, pensante: A ideia-corpo. Extensão e pensamento são faces da mesma substância. A ideia do corpo é a primeira ideia verdadeira ou real. Ela se dá ainda na criança recém-nascida. Mesmo dentro do útero materno a criança já sente, pelo tato, o líquido amniótico em que está envolvida e escuta os sons que lhe chegam aos ouvidos do entorno da mãe.

Pensamos involuntariamente o tempo todo. E a primeira ideia é o afeto. O corpo está sempre sendo afetado. O pensar do nosso corpo é a ideia do corpo, isto é, o afeto ou o pensamento, em resumo. A ideia do corpo é uma ideia do corpo marcado no momento real, presente, ou seja, que é afetado.

O ser humano pensa a ideia que ele tem de si mesmo. Aprofunda – em abstrações ligadas na forma do atributo pensamento – as ideias que fazemos da ideia do nosso corpo. Mas corpo e ideias são modificações constantes do nosso corpo em contato com o mundo, com o real.

Na ideia da ideia pensamos através de uma associação de imagens já conhecidas. Então, começamos a entender o novo diante de nós. Ao me permitir que eu não encontre associação de uma imagem conhecida, posso saber que estou diante do novo, do desconhecido.

Imaginação, assim, é associação de imagens. Essa é a única maneira de pensar. E desse modo é sempre uma concepção criativa de novas ideias. Por isso, posso reconhecer o novo. Ou então, projetar no inédito, por medo, uma imagem já conhecida. Projeção e trauma constituem-se no medo do novo, no medo do desconhecido, mesmo que seja na repetição de uma ideia dolorosa mas habitual.

Como escrito acima, uma ideia é sempre uma concepção. Uma criança pensa por associação de imagens. Até sentir a falta do seio materno, a criança não sabe que ela e a mãe não são um único ser. É na imagem dinâmica da presença e ausência da mãe, que a criança concebe a si mesma como um corpo que pensa associando imagens.

A relação entre o corpo e a mente para Espinosa se resolve na expressão: A mente é a ideia do corpo. Um corpo que pensa de modo integrado na soma plena e articulada de todas as suas partes. De modo que a mente é uma idéia de um corpo sem partes. Um corpo que é mente, na medida em que a associação de imagens só ocorre por constantes afecções.

O mundo e o corpo se encontram e se afetam. Esses encontros, permitem a formação de uma imagem-pensamento, de uma imagem-conceito, de uma imagem-ideia.. Essa imagem primeira – evidentemente – do acontecimento, da soma dos sentidos (e não apenas da visão) – será sempre usada na associação de imagens nos próximos encontros com o novo.

Assim, uma imagem conhecida pode ser projetada sobre o real, como defesa em relação ao desconhecido. Mas também pode compor com o conhecido numa associação que forma uma nova imagem, um aumento do conhecimento, singular e comum, do mundo.

Extensão em Espinosa significa corpo ou realidade. Nós somos uma modificação da substância, (uma modificação da realidade) dado que nosso corpo se fez por meio da combinação de átomos e moléculas, células microscópicas que combinam informação genética para dar origem a um indivíduo único.

Nós somos, portanto, essa modificação constante da substância – modernamente das partículas elementares do átomo – dado que Espinosa escreveu entre meados de 1600 até sua morte em 1677. Ele já era um crítico da razão cartesiana durante o iluminismo. Apenas 60 anos depois da execução de Giordano Bruna na fogueira da Santa Inquisição.

Não existe primazia da razão sobre os afetos, afirma Espinosa. Descartes dizia que havia duas formas da substância: a razão e a matéria, o corpo e a mente. Já para Espinosa a separação entre a substância abstrata e o mundo real, na obra de Descartes, retoma a dicotomia entre realidade e ideal de Platão.

Espinosa vê o todo – mente e corpo – como uma modificação da substância. Desse modo, não existe legitimidade na imposição da razão ao corpo, da racionalidade à realidade. Essa concepção cartesiana separa a verdade do mundo físico. E impõe esta suposta razão aos homens ou ao real.

É essa concepção dividida da razão, em relação ao real e ao corpo, que legitima a opressão de uns seres humanos contra outros, conforme se imponha ao singular uma suposta universalidade da razão. Não se trata de um manifesto anti racional, nem de uma negação da ciência. Ao contrário, trata-se de, em benefício do conhecimento e da ciência, ressignificar o lugar da razão na mente.

Por exemplo, o homem não existe. É uma ideia generalizada. O que existe é o ser humano singular, único e real. Negar o real em nome de um ideal é, portanto, absurdo. Dado que o plano comum de existência – o imenso acervo de imagens, crenças e hábitos compartilhados – e a constante associação de imagens, instauram uma simultaneidade entre as crenças compartilhadas e as singularidades que emergem constantemente, permitindo a constante criação de modos de vida. Ou seja, mente e corpo são aspectos de uma mesma e única substância que se modifica continuamente.

A moral é justamente a generalização idealizada e imposta ao ser singular como forma de defesa frente a constante mudança da realidade. Assim, a moral é um abuso. Já a ética significa agir em nome do próprio bem e do bem do outro. Enquanto a moral é fazer mal a si mesmo e aos outros, em nome do bem reduzido a moral, na forma de um ideal inobservável.

A moral está associada a seguir uma lei, formada pela imposição de um ideal. O gesto ético consiste em perguntar o que é bom em cada caso, considerando o desejo próprio e o desejo do outro. A ética pressupõe a diversidade e a singularidade sem a perda da “zona de comum” onde as crenças compartilhadas existem. É certo que as imagens do mundo não são, precisamente, “a” realidade.

Mas, ao se moverem, estas associações de imagens ativas, permitem que a associação de imagens realizadas pelo método científico, nos tragam para perto das intuições dos pensadores antigos, das tradições que integravam de modo dinâmico o ser humano ao seu meio e aos demais seres vivos. Perdemos isso quando colocamos a razão no lugar do ideal e do divino. Com o pensamento de Espinosa e Nietzsche, voltamos a um lugar mais humano e mais elevado. Voltamos à afirmação da vida.

Estas notas não tem a precisão de um trabalho acadêmico.

Seu caráter não chega nem mesmo a ser o de uma resenha autoral.

Aqui, minha associação de imagens se dá pela intuição de uma vida de leituras e reflexões.

Marco Antonio Pires de Oliveira

10 de Julho de 2021

Referências:

SPINOZA, B. Tratado da Correção do Intelecto. Breve Tratado e outros escritos. Tradução de J. Guinsburg e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2014.

NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Link:
Agenciamentos Contemporâneos: André Martins – Spinoza e a força transformadora da imaginação – https://youtu.be/tS4KKYsrV9Q Acessado a partir de 07/07/2021.