A construção da loucura como doença mental e a propagação de instituições asilares especialmente destinadas aos alienados, assinalando “a formulação de políticas públicas de tratamento e/ou repressão dos doentes mentais, identificados com base nos limites cada vez mais abrangentes da anormalidade”, neste texto vamos aborda a história da loucura no século XX.
A pratica psiquiátrica do século XX se baseia fundamentalmente na divisão da população em normais e anormais exatamente na época em que se incrementa no Brasil a concepção de população como força de trabalho, força produtiva. Tal força não pode ser perdida mas deve, antes, ser normalizada, assistida, sendo os anormais considerados degenerados, que necessitam de tratamento especial para se transformarem em elementos uteis à sociedade. Surge assim a concepção de “doenças sociais”, ou seja, doenças que representam grande risco para a manutenção da ordem social e por isso entravam o desenvolvimento da nação. São doenças tão frequentes que passam a ser consideradas como ‘endemias sociais’: alcoolismo, epilepsia, sífilis sendo responsáveis por grande contingente de criminalidade.
Nesse período, a loucura é gradativamente medicalizada e o tratamento psiquiátrico continua a ter como principal fundamento o isolamento do louco da vida social, a maioria dos Estados brasileiros incorpora colônias agrícolas à sua rede de oferta de serviços, seja como complemento aos hospitais psiquiátricos tradicionais, seja como opção única ou predominante. De acordo com Resende (2007, p. 47), o entusiasmo na adesão “à política de construção de colônias agrícolas não se deu apenas por exclusão de outras estratégias terapêuticas, de eficiência duvidosa, mas por ter encontrado um ambiente político e ideológico propícia ao seu florescimento”.
A psiquiatria ultrapassa seus próprios limites, o doente mental e o hospício, para originar novas formas assistenciais, criadas especialmente para o novo tipo de individuo a quem começa a se dirigir; o desviante moral em geral, não necessariamente atingido pela doença mental, mas doente mental em potencial.
Entretanto, apesar das intenções de recuperação dos doentes mentais, nas propostas de seus criadores, as colônias continuaram a manter na prática a mesma função que caracterizava a assistência ao alienado no Brasil desde a sua criação: a de excluir o louco de seu convívio social e de escondê-lo dos olhos da sociedade. Este período, que se encerra em 1920, mantém “inalterada a destinação social do hospital psiquiátrico a despeito da substituição da psiquiatria empírica pela cientifica” (RESENDE, 2007, p. 52) e se destaca pela ampliação do espaço asilar.
A década de 1920 é marcada pela “ampliação e o aprofundamento da influência dos princípios eugênicos no âmbito da psiquiatria brasileira, que sem romper com os referenciais organicistas, passaria a caracterizar-se, cada vez mais, pela presença de perspectivas preventistas”. Em 1923, com a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), se cristaliza o movimento de higiene mental, como um programa de intervenção no espaço social com características marcadamente eugenistas, xenofóbicas, antiliberais e racistas. A psiquiatria passa também a pretender a recuperação das raças e a constituição de coletividades sadias, colocando-se definitivamente em defesa do Estado, levando-o a uma ação rigorosa de controle social e reivindicando um maior poder de intervenção. As palavras de ordem da Liga eram “controlar, tratar e curar” e os fenômenos psíquicos eram vistos como produtos da raça ou do meio, decorrentes de obscuros fatores biológicos ou orgânicos. A vertente higienista propunha melhorias sanitárias e modificação dos costumes e dos modos de vida da população como forma de prevenir as doenças mentais, pois embora tivessem origem em fatores individuais, as condições sanitárias, tais como “o aumento do alcoolismo e da sífilis”, eram consideradas como “fatores desencadeantes”.
Em 1941, foi criado o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), vinculado ao Ministério da Educação e Saúde6. Neste período predominavam os hospitais públicos responsáveis por 80,7% dos hospitais psiquiátricos no Brasil. Os famosos asilos, como o Juqueri (em São Paulo), o Hospital de Alienados (no Rio de Janeiro) e o São Pedro (em Porto Alegre), exerciam um papel orientador da assistência psiquiátrica, consolidando a política macro-hospitalar pública como o principal instrumento de intervenção sobre a doença mental. Embora existissem alguns hospitais privados e ambulatórios, estes eram bastante incipientes diante do vigor dos hospitais públicos.
O período que se seguiu ao golpe militar de 1964 foi o marco divisório entre uma assistência eminentemente destinada ao doente mental indigente e uma nova fase, a partir da qual se estendeu a cobertura à massa de trabalhadores e seus dependentes. Foram os governos militares que consolidaram a articulação entre internação asilar e privatização da assistência, com a crescente contratação de leitos nas clínicas e hospitais psiquiátricos conveniados, que floresceram rapidamente para atender a demanda. As internações passaram a ser feitas não apenas em hospitais públicos (que, dadas as suas precárias condições, permaneceram reservados aos indivíduos sem vínculos com a previdência social), mas em instituições privadas, que eram remuneradas pelo setor público para isso.10 Na maioria das vezes, as clínicas contratadas funcionavam totalmente às expensas do Sistema Único de Saúde (SUS) – antes via INPS (Instituto Nacional de Previdência Social). Sua única fonte de receita era a internação psiquiátrica, remunerada na forma de diária paga para cada dia de internação de cada paciente.
Como na psiquiatria, ao contrário de outras especialidades da medicina, a indicação de internação nem sempre é clara ou indiscutível, a decisão, com grande margem de escolha, fica a critério do médico ou da família do paciente. O sistema e a mentalidade vigentes estavam organizados em torno da internação (e da internação prolongada), as empresas hospitalares auferiam benefícios significativos com as internações (sua única fonte de lucro), com total falta de controle pelo estado, observando-se um verdadeiro empuxo a internação, razão pela qual este sistema veio a ser chamado de “indústria da loucura”.
A discussão acerca da necessidade de humanização do tratamento do doente mental teve início na década de 1970, momento em que diversos setores da sociedade brasileira se mobilizaram em torno da redemocratização do país. A discussão acerca da violência, dos maus tratos e da tortura praticada nos asilos brasileiros produziu, em grande parte, a insatisfação que alimentou o Movimento Antimanicomial. Entretanto, ainda não estava muito claro qual deveria ser o modelo de cuidado e nem havia uma proposta estruturada da intervenção clínica. Alguns grupos de técnicos de saúde, acadêmicos, militantes sociais, organizações comunitárias e afins, influenciados pela Psiquiatria Democrática Italiana – especialmente o pensamento de Franco Basaglia – começam a criar uma sistematização de pensamento contra hegemônico na assistência em Saúde Mental. No final da década de 1980, surgem os primeiros Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e fecham-se alguns manicômios e se inicia um embate epistemológico, político e técnico em prol de “uma sociedade sem manicômios”. Em 1987 foi realizada, no Rio de Janeiro, a I Conferência Nacional de Saúde Mental e, em 1989, foi dada a entrada no Congresso Nacional do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no Brasil, marcando “o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo”.
Entre os protagonistas desse movimento contra-hegemônico surge o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial como um movimento social deveras heterogêneo, mas com um importante consenso entre seus integrantes: não é mais aceitável que o infortúnio do acometimento de um transtorno mental leve qualquer indivíduo ao encarceramento num manicômio por décadas de sua vida, muitas vezes sem cuidados integrais a sua saúde e com desrespeito a seus direitos Humanos e civis. Em função do compromisso firmado pelo Brasil na Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, passaram a entrar em vigor no país, a partir da década de 1990, as primeiras normas federais regulamentando a implantação dos serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dias. Também foram aprovadas as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. As macro mudanças legislativas, jurídicas e administrativas foram, no período de institucionalização da Reforma Psiquiátrica, consideradas necessárias e, até mesmo, as garantias de operacionalização de novas práticas terapêuticas.
TEXTO ESCRITO PELAS ALUNAS DE PÓS GRADUAÇÃO DE ENFERMAGEM EM SAÚDE MENTAL E PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA SANTA CASA DE SÃO PAULO.
ANA CAROLINA DE OLIVEIRA
JULIANE GONÇALVES PEREIRA
LUCILENE GOMES SIQUEIRA
Por Raphael
Olá Ana Carolina,
Sugiro que vocês insiram na postagem como imagem destacada, algo que represente a saúde mental no século passado.
Acredito que a resenha de vocês pontua os principais acontecimentos do período histórico mais importante, pois é quando a direção das políticas mudam resultando na Reforma Psiquiátrica que ainda temos hoje.
Vi que vocês chegam a introduzir a questão do alcoolismo brevemente, poderiam ter explorado um pouco mais essa problemática.
Acredito que infelizmente a separação entre ” normais e anormais” segue sendo praticada no mundo do trabalho e por esse motivo cotas para pessoas com deficiência são extremamente necessárias.
Quando vocês utilizam o termo doentes mentais para designar pessoas em sofrimento psíquico eu fico pensando o quanto antigamente as pessoas realmente colocavam todos na mesma caixa e nem precisamos voltar muito no tempo para isso.
Parabéns ao grupo!
AbraSUS
Raphael