Já há mais de um mês que a Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas publicou a “Nota Técnica” que institui a “Nova Saúde Mental” no Brasil.
Hoje, dia 07 de Março, mais de um mês passada a publicação dessa Nota, faço 37 anos.
Pode parecer estranho associar essas duas coisas, mas um fato explica esse acontecimento, só agora consegui ajustar a agenda de 12 horas diárias de trabalho para conseguir parar tudo e ler a Nota Técnica.
Pelos corredores da faculdade e pela websfera me perguntavam: o que você achou?
Exaustos-e-correndo-e-dopados, foi assim que Eliane Brum, fazendo referência às análises de Byung-Chul Han, caracterizou a nossa época. E para quem é ativista, soma-se a isso um certo gosto amargo de frustação que 2019 nos colocou.
Quando me perguntam, como estou, em 2019, eu digo: exaustos-e-correndo-e-dopados-e-desesperançosos.
Para quem atua, mesmo que tangencialmente, na saúde mental, a portaria da Coordenação de Sáude Mental, Álcool e Outras Drogas é uma verdadeira lobotomia na inteligência coletiva que se constitui o campo das políticas públicas de saúde mental no Brasil. Aquela que conseguiu desmontar diversos manicômicos e tensionou com a sociedade um papel mais ativo e humanizado aos que são postos à margem da sociedade.
O documento traz 17 vezes o termo ‘nova’ e 18 vezes o termo ‘novo’ para ser apenas o berço para um velho ator, o ECT, Eletroconvulsoterapia.
Afinal, o que é a perda da memória e história de um paciente, frente a uma melhora no quadro de saúde dele?
Eu diria, MUITA COISA.
Apesar de alguns pesquisadores doutrinados pelo pensamento da indústria de dados científicos dizerem que há ‘evidências’ de sua eficácia, qualquer pesquisa mais robusta mostra que mesmo quando eficaz, só para quadros muito graves e para melhora de curto prazo (link1) (link2)
O que o documento traz de inovador é chancelar um gama de procedimentos e equipamentos que recolocam a culpa de determinado acometimento em saúde mental estritamente no cérebro, como se ele fosse uma bateria velha de carro que precisasse de uma ajuda para funcionar ‘corretamente’.
Como todo trabalhador de saúde sabe, e tem medo, há dificuldade em aplicar as tecnologias de saúde somente dentro dos protocolos terapêuticos. A história das ‘descobertas’ realizadas pelas prescrições off-label ou ainda, da invenção de transtornos com curas medicamentosas associadas é comum. A prescrição de medicamentos comerciais mais caros, não respeitando a Rename (Relação Nacional de Medicamentos) também.
E é dentro desse cenário que florescem as terapias de neuromodulação como a ETC e outras menos conhecidas como a a estimulação magnética transcraniana (EMT) e a estimulação transcraniana por corrente continua (ETCC). Caso tenha interesse em usar umas das técnicas elas são bem explicadas aqui, afinal, não são tão ruins quanto a ETC em seus efeitos colaterais (dizem, mesmo sem estudos de longa duração).
O recado que é dado é que o cerébro, entidade separada da subjetividade, poço químico desequilibrado, pode ser tratado em separado de todas as problematícas que a pessoa que carrega o cérebro pode ter.
Chamo a atenção desse ponto porque a associação de indústria de tecnologias de saúde + indústria de produção de conhecimento tem produzido alguma inovações de difícil entendimento, como a ETCC em crianças com dislexia, por exemplo.
Afinal, se há efeito considerado desejado, é porque o instrumento utilizado é eficaz?
Pode parecer uma pergunta simples e boba, mas é aquela que até mesmo quem vende esses serviços expõe: funciona, levar choques e entrar em convulsão vai melhorar a sua vida, só não sabemos como esses choques e a convulsão fazem você melhorar de vida.
O psiquiatra e pesquisador Moacyr Alexandro Rosa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estimulação Cerebral (Abecer), explica que os mecanismos de ação da eletroconvulsoterapia ainda estão sendo pesquisados. “Os efeitos são semelhantes aos dos fármacos, ela reduz receptores, libera hormônios e altera o ritmo cerebral. Mas faz isso de forma mais rápida. A depressão pode ser uma doença mortal. Quando você tem um paciente com risco de suicídio, não pode esperar semanas até que o remédio faça efeito”, defende
E não necessariamente, nos serviços privados, a ECT tem sido utilizado como última possibilidade, o que pode nos trazer mais problemas quando a ECT for associada com os Serviços de Residências Terapêuticas, já que o fluxo entre essas unidades e os leitos e ambulatórios psiquiátricos voltam a ser fortemente financiados.
Diz o documento:
Todos os Serviços, que compõem a RAPS, são igualmente importantes e devem ser incentivados,
ampliados e fortalecidos. O Ministério da Saúde não considera mais Serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais fechamento de unidades de qualquer natureza. A
Rede deve ser harmônica e complementar. Assim, não há mais porque se falar em “rede
substitutiva”, já que nenhum Serviço substitui outro. O país necessita de mais e diversificados tipos de Serviços para a oferta de tratamento adequado aos pacientes e seus familiares.
Com essa parte da portaria entendemos a que a nova diretriz veio, a impedir que se implemente, de fato, uma política de saúde mental no Brasil, e não somente uma política de assistência aos acometimentos da saúde mental.
Segundo o boletim da Organização Mundial da Saúde “Saúde Mental: reforçando a nossa resposta” de 2018
Os problemas de saúde mental também estão associados aos seguintes fatores: rápida mudança social; condições degradantes de trabalho; discriminação de gênero; exclusão social; estilo de vida não saudável; saúde física degradada e violações de direitos humanos.
Em um 2019 que teve Brumadinho, Davi, as ameaças a Babau , do exílio de Jean Wyllys, do auto-exílio de tantos outros, a nota do ministério nos mostra que o verdadeiro choque democrático prometido pós-1988 da redemocratização, de ocupação democrática dos espaços e da igualdade e justiça social, esse choque, não conseguimos dar.
Por Raphael
Olá Rui,
Parabéns pelo seu aniversário de 37 anos!
Com essa bela postagem o presente, ganhamos nós.
Essa nota técnica é sem dúvida uma “facada na boca do estômago” dos trabalhadores, usuários e militantes de saúde mental.
O discurso de que todos os serviços são importantes e portanto nenhum substitui o outro, promove a falsa igualdade e para muitas pessoas da sociedade em geral, passa despercebida a armadilha do retorno á práticas de tortura, caras e sem evidência científica suficiente.
Obrigado por trazer esse assunto novamente á Rede, pois a luta ainda está muito longe de terminar!
AbraSUS
Raphael