Não há como o fascismo se constituir numa sociedade sem que antes uma visão proto fascista de mundo colonize a subjetividade, o senso comum e o imaginário coletivo. Reconhecer isso é reconhecer a multiplicidade que compõem o que chamamos de humanidade. Na potência de ser humano está suposta a latência e a eclosão intermitente dos sentimentos recalcados inconscientemente.
Não haveria um governo Marchezan sem os 30% de votos que o elegeram. Sem a ilusão de que tanta desigualdade social possa se resolver no mito da meritocracia e na mera gestão dos fluxos de caixa, não estaríamos nesse atoleiro.
A história nos ensina que Hitler venceu a eleição para primeiro ministro com poucos votos. Na sequência o governo nazista incendiou o prédio do congresso, culpou os comunistas, chamou novas eleições e venceu com 90 por cento dos votos e Hitler se tornou o fuhrer. Ressalvadas as semelhanças, nada garante que a história irá se repetir. O que virá será de acordo com o contexto do século XXI. Isso tampouco nos assegura que essa ressurgência fascista será menos trágica que a do século XX.
Vejo o espaço das redes sociais como o lugar para a crítica social fundamentada e do mesmo modo para a autocrítica. Nos momentos de crise é natural que nos tornemos mais paranóicos e projetivos. Culpamos os outros por nossos equívocos e limitações.
Relendo a história da rede municipal de educação em Porto Alegre vejo que desde o início, as comunidades e os alunos que atendemos sofrem uma permanente situação de crise e violação de direitos humanos.
Há sete anos, quando comecei a lecionar, alertei que a carreira na rede municipal de educação de Porto Alegre era a melhor do Brasil porque tivemos uma sequência de governos, na cidade e depois em Brasília, comprometidos com a inclusão social e econômica das comunidades mais vulneráveis. Independente do cinismo de muitas forças políticas que defendiam o Estado de proteção social, eu sabia que a direita liberal conservadora viria para abandonar as comunidades e nós iríamos afundar junto nesse abandono.
Para os liberais conservadores, as medidas de valor superior são o dinheiro e o capital simbólico. Na prática, para eles, quem não possui essas duas moedas, dinheiro e educação superior, não tem valor. É, de fato, sub humano. Atualmente, mesmo o capital simbólico acadêmico e as referências de autoridade científica vêm perdendo prestígio. Somente a pseudo ciência de direita tem alguma reserva de autoridade por sua subordinação ao mercado financeiro e ao dinheiro.
Os pressupostos da construção da rede municipal de ensino de Porto Alegre são exatamente o contrário desse tipo de posicionamento político filosófico de direita que engendra o proto fascismo.
Não existem sub humanos, não importa o quanto empurramos mais e mais gente para a miséria. A violação da dignidade humana ressalta a tendência humana para a barbárie nos opressores. No entanto, os filhos dos oprimidos são tão humanos quanto os nossos, os da classe média alta e os dos ricos.
Muitas vezes ouvi críticas, na sala dos professores, a forma como alunos vulneráveis se comportam, a forma como seus familiares cuidam deles. Apontamos as consequências da vulnerabilidade como sendo culpa dos próprios vulneráveis. Culpamos os miseráveis pela miséria, os mal educados pela má educação e estigmatizamos o sofrimento produzido pela estrutura social.
A prova de que isso é um equívoco é justamente a nossa errância metodológica nesses tempos em que a crise se precipita agudamente sobre nós, membros dos estratos sociais remediados e “bem” educados.
Alguns de nós, talvez muitos, nos protegemos no silêncio, como se o medo não fosse um sentimento natural a todos, inclusive para aqueles que resistem e lutam.
Esse é um momento ideal para a reflexão e a busca por auto conhecimento.
Devemos nos perguntar até onde, em nosso íntimo, não concordamos em linhas gerais com ideias liberais e conservadoras que trazem embutidos pressupostos proto fascistas. Devemos exorcizar a dor de vermos que ninguém está livre do preconceito culturalista e racial contra os pobres e negros. Herdamos uma cultura de séculos de ódio aos negros e pobres, como observa Jessé de Souza em “A elite do atraso”.
Nesse momento em que experimentamos aquilo que os excluídos vivem durante toda a existência, podemos saber mais sobre nós mesmos e toda a barbárie que historicamente fomos condicionados a naturalizar.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Como sempre um post transcendente, Marco. Estou com uma frase de Sartre na cabeça ou uma interpretação dela e acho que cabe colocá-la por aqui também. E associá-la ao alerta de Foucault sobre buscarmos detectar o pequeno tirano ou fascista que vive em nós e se manifesta nas menores atitudes ou olhares a qualquer momento. Somos responsáveis por modificar aquilo que fizeram de nós. Não precisamos nos submeter passivamente às tiranias, mas buscar lutar, mantendo a prudência e a dignidade, o quanto for possível e isto é uma experimentação incansável.