O pressuposto do individualismo social e econômico é de que cada pessoa é livre e autonomamente responsável pelo seu próprio bem estar e segurança. A unidade desse indivíduo que se basta é demarcada pela independência e auto suficiência de seu corpo. A posse e o controle de si mesmo é a base da ideia de propriedade privada.
Porque há um eu inconfundível – que é o dono de si mesmo – então é possível a posse e o controle, ou seja, a propriedade privada de bens móveis e imóveis, de recursos naturais e financeiros.
Desse modo alguém pode ser o dono de mais alimentos do que pode digerir ao longo de toda a sua existência e outros podem morrer de fome.
No individualismo é legítimo que alguém, ao possuir a si mesmo, tenha mais capacidade agregada a esse suposto e independente eu biológico. E, esse excedente de capacidade lhe permite acumular mais bens e recursos na forma da propriedade das diversas formas de capital. Pouco importa que, do ponto de vista biológico, esse excedente de propriedade lhe seja inútil.
Ter o controle de mais água do que se pode beber só faz sentido num sistema social onde o controle do acesso a água implica numa forma de poder e onde essa forma de poder representa um valor. Um bando controlar o acesso a uma fonte de água onde a mesma é escassa representa o claro valor da sobrevivência de uma estirpe, de um grupo social e genético em prejuízo de outro ou outros grupos.
Mas, quando o controle da água representa a acumulação de uma riqueza na forma de capital, o valor corre a constante ameaça de sua própria dissolução. É isso que Marx chama de a contradição inerente ao modo de produção capitalista: o valor é sempre portador da negação de si mesmo.
Por exemplo, toda a riqueza material e simbólica se dissolve diante da morte. Como todos os agentes do capitalismo morrem, a destruição está no centro da contradição do sistema capitalista. Todos os balanços contábeis da economia monitoram a eminência da catástrofe da dissolução do valor.
Por agora, voltemos ao tema dos pés de barro do individualismo deixando o assunto da dissolução do valor para o final desse texto. A epidemia do novo coronavírus, que causa a covid-19, representa uma grande evidência de que o individualismo não passa de uma ideologia falaciosa.
Os limites do corpo humano estão se expandindo para muito além da nossa pele. O contato efetivo de nossos atributos físicos se projeta para muitos metros além do espaço que nosso corpo parece ocupar. As micro gotículas e o aerossol expelido de nossos pulmões, através das vias aéreas, pode chegar às células e ao DNA de outros indivíduos mesmo a distância de um ou mais metros. Essa nossa presença fluída pode tocar outro ser humano horas ou dias depois de nossa ausência. Ou seja, podemos tocar mortalmente pessoas com as quais jamais estivemos.
Para o Coronavírus o caminho até o DNA de um indivíduo é apenas uma névoa contínua que conecta nossos corpos supostamente individuais. Para os vírus não somos indivíduos. A humanidade é um contínuo ecossistema com diferentes configurações imunológicas mais ou menos desafiadoras para o instinto de expansão e reprodução do vírus.
Por isso, a pandemia não reconhece nenhuma fronteira de uma pessoa para a outra. Do mesmo modo que passa livremente de uma cultura a outra, de cidade em cidade, até chegar a todos os países e continentes infectando não pessoas, mas sim o corpo social interconectado, sem o qual, ninguém de fato pode ser alguém.
É evidente que o indivíduo não pode ser a base de nenhuma teoria social ou econômica que pretenda ser mais do que uma idealização que supõe bases, excluindo de si mesma a incalculável complexidade da realidade. O indivíduo é efeito e não fundamento da ordem social.
No entanto, não há valor, nem pode existir riqueza na forma de acumulação de capital sem produção incessante de mercadorias através do trabalho de todas as pessoas que existem ou já existiram. Se a substância do valor está no trabalho a acumulação do capital está na circulação do valor através da mercadoria. É no modo de produção capitalista, especificamente, que a circulação de mercadorias promove a acumulação de capital.
A ordem de valor em cada sistema de produção depende, portanto, da realização do trabalho. A acumulação de capital é sujeita a crises recorrentes toda vez que a circulação de mercadorias colapsa por superprodução ou retração da demanda de consumo. Ou seja, a circulação de mercadorias – de outro modo a reprodução do capital – causa ao mesmo tempo em que é efeito da acumulação de capital. O capitalismo carrega em si mesmo uma contradição insolúvel.
Como Karl Marx percebeu, o indivíduo não é o autor da ordem social engendrada no capitalismo. As relações sociais, dadas na forma da acumulação do capital, deram curso ao surgimento de um autômato que busca reproduzir a si mesmo. Assim, os indivíduos servem a lógica de reprodução do capital e não o contrário.
A ameaça a humanidade, advinda da eclosão de fenômenos naturais como a adaptação de cepas virais a biologia humana não poderia existir num mundo que não fosse globalizado segundo as necessidades de reprodução do capital. Para sairmos da crise econômica causada pelas contradições da própria economia capitalista e dos efeitos sobre o ambiente que causaram a migração do vírus para os seres humanos, precisamos superar a lógica da reprodução do capital.
A economia deve servir a necessidades humanas rigorosamente pensadas e conscientemente consideradas.
A tarefa de encontrar a relação entre as necessidades humanas e a disponibilidade e potência de nossos recursos não pode ser legada a mão invisível do mercado.