Esquerda e direita são galhos da árvore do iluminismo. A divergência desses dois modos de pensamento reside no tipo de melhores humanos que cada modelo defende. Os liberais dizem que o melhor ser humano é individualista, guiado pelo auto interesse, o egoísta típico. Na visão de mundo de esquerda o melhor tipo de humano está na vanguarda coletivista. Os grevistas devem decidir sobre tudo por que são o melhor tipo de humanos que existe. Os militantes de esquerda são os que têm mais lucidez. E, podem entregar as massas o melhor dos mundos através de seu sacrifício na luta política. Por isso eles se vêem como os melhores.
Isso sem dúvida é legítimo. Mas é o mesmo tipo de legitimidade que os liberais reivindicam para os empreendedores.
A ameaça aos trabalhadores de hoje é de outra natureza. No mundo em que O Capital foi escrito os humanos eram formalmente o centro da existência. Carl Marx denunciou que o capital, o dinheiro, era na prática, o fundamento do valor de cada humano. Marx olhou para a base material do sistema de produção e viu a exploração do trabalho. Isso ainda existe e evoluiu para um estado de superexploração.
Mas a base material do sistema de produção está se movendo rapidamente. A industrialização que foi baseada nas máquinas, que potencializam a força humana, está dando lugar a um sistema de produção movido a inteligências artificiais que comandam artefatos e sistemas nos quais a maioria dos humanos têm uma função meramente auxiliar.
Uma pequena elite mundial é proprietária dessas sistemas e inteligências artificiais. Ela decide quem serão os ricos que atuam como supervisores do funcionamento desse esquema de desumanização da produção.
Então, estamos vendo a emergência de um regime de discurso em que o humanismo não tem mais valor. Seja de esquerda ou de direita, não importa, o que não tem valor, agora, é o ser humano. Morador de rua, engenheiro, médico, qualquer um é dispensável, por princípio, para a produção das mercadorias ou serviços, e para a reprodução do capital.
É isso que a esquerda radical não quer entender. Eles preferem ser eles mesmos de modo anacrônico estagnados numa versão discursiva localizada no século XIX.
Os limites da racionalidade
Nossa visão de mundo jamais pode estar certa. Isso é particularmente verdade quando as formações discursivas perdem legitimidade. A realidade não é um jogo no qual ficamos arremessando nossa subjetividade para ver se ela acerta o alvo dos fatos. Os fatos contém a subjetividade, tanto quanto, em certa medida, a subjetividade os determina. Nossos desejos e propostas são meras partículas do real. Jamais podem expressar a totalidade da existência.
Para entender a concretude desse evento, fiz uma experiência com meus alunos. Projetei no quadro branco a página do Google Translator e falei. A inteligência artificial transcreveu minha fala. Quando digitava uma palavra errada ela seguia até o final da frase, percebia o contexto e voltava em frações de segundos corrigindo o texto. Detalhe: o texto surgia na tela simultaneamente em inglês.
Isso não existia há poucos anos atrás.
Minha hipótese, em acordo com a análise de Yuval Harari em “Homo Deus: Uma breve história do futuro” é que estamos testemunhando um fenômeno inédito na jornada da vida na terra. Não se trata de algo mudando no contexto humano apenas.
Inteligência e consciência estão se desacoplando. Os artefatos humanos não precisam ser autoconscientes para superarem as capacidades humanas. Se alguém ou alguma coletividade puder possuir e controlar esses artefatos ela se colocará acima da humanidade.
Esse é o contexto que permite o discurso e os PLs de Marchezan. A ressurgência neoliberal na América Latina tem relação com a desterritorialização do ideário iluminista. Por isso sentimos essa insuficiência de sentido e significado que escapa às racionalidades tradicionais. Na verdade o fenômeno afeta o próprio conceito de racionalidade, como o entendemos desde que o teocentrismo cedeu seu lugar ao humanismo.