Nas últimas duas semanas, no conteúdo sobre geopolítica e relações internacionais, conversei com os alunos das Totalidades 6, do turno da manhã, sobre o conflito entre a Rússia e a OTAN. Vimos como essa disputa entre as grandes potências nucleares degenerou na chamada invasão da Ucrânia.
Apresentei os episódios mais marcantes, desde os bombardeios contra Hiroshima e Nagasaki – que encerraram a Segunda Guerra Mundial – e os momentos mais tensos da Guerra Fria, a queda da União Soviética e a emergência da China ao lado da Rússia nessa nova fase do equilíbrio do terror que estamos vivendo agora.
Desde o início das aulas percebi que alguns alunos têm mais interesse no assunto. Vi o interesse destes desde o início do confronto entre Rússia e Ucrânia. Mas o assunto capturou a atenção geral das duas turmas. Pela intensidade psíquica desse tipo de reflexão não tratei do assunto nas turmas especiais. Mas o interesse dos jovens nesse assunto é evidente, ainda que ansiogênico e angustiante para todos nós.
Mesmo quando a atenção se dispersava era pelo nervosismo que o tema gera e não deixei de mencionar isso. Num momento o assunto desviou para namoros. Com delicadeza disse que era natural flutuar do terror da ideia de destruição para a ideia de afirmação da vida pela via da descoberta do amor adolescente. Ao entenderem a origem da dispersão da atenção ela naturalmente se restabeleceu.
Entendo que alunos do ensino fundamental, que acordam de manhã e se dirigem à escola para aprender sobre a sociedade em que estão inseridos através de um currículo básico e, portanto, não escolhido por eles, estão num aprendizado que é metade de descobertas do mundo adulto e metade um processo de autoconhecimento. A lógica do mundo é misteriosa, em muitos sentidos assustadora. Isso explica muito da aparente perda de interesse no conteúdo. Em muitos sentidos eles estão se defendendo intuitivamente de um conhecimento que pode ser aporético, ou sem significado para suas vidas. O tema da geopolítica se encaixa bem nesse escopo de saber que parece escapar a qualquer de nossas possibilidades de intervenção. Não é assim, mas parece ser assim.
O equilíbrio do terror entre as superpotências é de várias formas um atestado do aparente fracasso da minha geração, talvez da própria humanidade, e um peso que a geração de nossos filhos terá que resolver de algum modo até o final deste século. Juntamente – e de certa forma interligado – com a ameaça representada pelas mudanças climáticas, nossa capacidade de autodestruição é um problema real para nós e, em maior medida, para as gerações futuras.
O estudo das doutrinas de segurança baseadas no conceito de Destruição Mutuamente Assegurada (da sigla MAD, que também significa loucura ou louco em inglês) foram o ponto final dessa série de aulas. A segurança advinda de estar armado até os dentes e disposto a usar a violência de suas mais potentes armas é, embora contra intuitivo e evidentemente altamente arriscado, a base da paz nas relações internacionais do século XX e XXI.
Usei vários exemplos cotidianos de conflitos em que não há nenhuma estratégia que torne possível uma vitória para qualquer dos lados de um confronto. O “Impasse Mexicano” é o mais conhecido. Ele realmente ocorre em muitas disputas entre traficantes de drogas, por exemplo.
Há incontáveis cenas de filmes que retratam situações em que, estando todos com as armas apontadas uns para os outros, ninguém pode baixar a arma porque morre. Mas também é certo que morre se puxar o gatilho. Pois esse impasse, juntamente com um impulso para autodestruição é a base atual da paz entre as nações mais poderosas da Terra. Evitei o exemplo do suicídio involuntário ou por acidente por razões óbvias, mas ele é válido também.
Os minutos finais da aula foram surreais. Estávamos diante do fato de que – em termos políticos e filosóficos – toda racionalidade que funda a civilização humana e o modo de vida contemporâneo, está sustentado, sob qualquer ponto de vista, numa estrutura insana. Assistimos a um vídeo que descrevia o passo a passo institucional, político e militar, o protocolo público da autorização do disparo de armas nucleares pelos EUA e o chamado mecanismo da “Mão Morta” que existe no comando político e militar da Rússia, como resposta a um possível ataque devastador com armas nucleares.
Pensar que pessoas com a melhor educação e os cargos políticos e militares de maior responsabilidade da espécie humana realmente podem (e têm como dever) destruir a civilização e possivelmente a própria espécie humana, nos dá a noção do nível de insanidade da situação em que estamos. Pessoas cultas e educadas em graus elevados, quando comparados a maioria da população do planeta, trabalham a vida inteira num estado de prontidão para executar a destruição da civilização e da espécie humana. O que isso significa?
De fato, esse mecanismo terrível parece ser o que evitou uma nova – e talvez última – guerra mundial por mais de 70 anos. Ou seja, ressentimento e negação da vida estão na base da nossa ordem econômica e social.
Em termos pedagógicos o tipo de abordagem que realizei evita a discussão polêmica a respeito de qual dos lados do conflito têm mais ou menos razão e legitimidade. A situação é insana sob qualquer ponto de vista e tanto as consequências econômicas, quanto a catástrofe climática, são suficientes para que a paz seja o foco de nossos esforços.
Em um momento posterior, na reunião dos professores, percebi uma certa desorientação geral. Diante dos repetidos ataques dos governos federal, estadual e municipal ao sistema público de educação, após todo o período da pandemia, o retorno da inflação, numa situação de incerteza sobre a eleição em Outubro e com um confronto entre superpotências se desenhando no horizonte, não sabemos em qual das frentes de luta ainda faz sentido concentrar nossas parcas energias.
Cada vez mais parece haver uma marcha da insensatez que se impõe para além de nossas forças. Mas para os jovens o impensável lhes diz ainda mais respeito do que a nós. Pensar que o que evita o impensável é chamado de “equilíbrio do terror” é ainda mais assustador.
Compartilho essa reflexão nas minhas redes sociais porque não consigo deixar de procurar o que é mais importante e decisivo em nossas existências. Já sabemos que outros mundos são possíveis. Inclusive mundos sem a humanidade. É um tipo de “impensável” que a arte tem imaginado intensamente pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Os filmes pós apocalípticos só são irreais na medida em que seus personagens são controlados, salvos ou condenados, pelos narradores e roteiristas das histórias. Na vida real, por quanto tempo e em que condições os sobreviventes irão persistir é totalmente imprevisível e possivelmente aleatório de nosso ponto de vista.
Enfim, precisamos pensar o impensável e imaginar o inimaginável para que talvez consigamos evitar que ele se torne realidade.