Práticas desmedicalizantes e os avanços e desafios no tratamento dos transtornos mentais

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Adonias Ferreira Ramos, estudante do Internato em Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas.

Reflexões sobre práticas desmedicalizantes e os avanços e desafios no tratamento dos transtornos mentais.

Embora a reforma psiquiátrica tenha permitido uma nova abordagem da saúde mental, a alta taxa de medicalização em pacientes psiquiátricos ainda é uma realidade. Mesmo com os grandes avanços na atenção ao paciente, o tratamento deste muitas vezes resume-se apenas ao uso de fármacos, sendo esses medicamentos usados por tempo indeterminado.

Em meio a esse contexto, surgiu a Gestão Autônoma de Medicação (GAM), uma abordagem com o objetivo de intervir em práticas de cuidado. Trata-se de uma estratégia que permite que os usuários tenham acesso a todas as informações sobre o seu tratamento, considerando seus efeitos em todos os aspectos da vida, e assim possam reivindicar seus direitos, reforçando a tomada de decisões entre o usuário e o profissional de saúde.

Refere-se ao processo em que um indivíduo é capacitado a gerenciar sua própria medicação de forma independente. Isso pode envolver várias etapas, desde o entendimento da prescrição médica até a administração correta dos medicamentos no momento adequado. O guia GAM (material impresso para suporte dos usuários) é dividido em passos, orientando as pessoas usuárias dos psicotrópicos a fazerem um balanço da própria vida e assim ter uma melhor qualidade, com a utilização de dinâmicas que visam a ajuda mútua, troca e experiências e a estimular buscar informações sobre os medicamentos utilizados. Os passos estão descritos abaixo:

  1. Conhecendo um pouco sobre você: permite ao paciente se conhecer além dos seus problemas de saúde.
  2. Observando a si mesmo: propõe ao usuário fazer o exercício de se observar com relação a vários aspectos da sua vida, inclusive sobre a medicação utilizada.
  3. Ampliando a sua autonomia: aborda aspectos da vida dos usuários que contribuam para que eles se sintam mais seguros para tomarem decisões sobre o uso de medicamentos. Propõe a eles que identifiquem uma rede de apoio para os ajudar durante o processo.
  4. Conversando sobre os medicamentos psiquiátricos: é importante que cada participante trabalhe com sua própria medicação.
  5. Por onde andamos: faz uma revisão do guia, com o objetivo de exercer a autonomia e aumentar a participação de cada um no seu tratamento.
  6. Planejando nossas ações: permite construir um plano de ações coletivo, identificando problemas e definindo estratégias para enfrenta-los.

Esses passos garantem que o paciente esteja bem informado, organizado e capaz de gerenciar sua própria medicação com segurança e eficácia, sob a supervisão e orientação adequadas dos profissionais de saúde. Dessa forma, a gestão autônoma de medicação pode proporcionar aos pacientes maior autonomia e controle sobre sua própria saúde, desde que seja feita de forma responsável e sob a orientação adequada dos profissionais de saúde. Em resumo, a gestão autônoma de medicação não apenas promove a segurança e eficácia do tratamento, mas também capacita os pacientes a serem parceiros ativos em sua própria saúde, resultando em melhores resultados clínicos e uma experiência mais positiva de cuidado médico.

Outra prática terapêutica que surgiu para atender crises psiquiátricas e assim reduzir o uso de medicamentos foi o método Diálogo Aberto. Este método engloba um conjunto de práticas de se diferenciam completamente das convencionais, contribuindo para o processo de desmedicalização. É baseado em sete princípios fundamentais:

  1. Ajuda imediata: é necessário que o primeiro atendimento ocorra nas primeiras 24 horas, de preferência no domicílio do paciente, evitando assim a hospitalização.
  2. Inclusão da rede social do usuário: isso inclui a família, amigos e vínculos que são significativos para o paciente em todas as reuniões de tratamento; nenhuma decisão deve ser tomada fora dessa rede.
  3. Flexibilidade: o tratamento deve ser adaptado às necessidades específicas de cada paciente.
  4. Responsabilidade: quem atende primeiramente o paciente deverá organizar a primeira reunião de tratamento, posteriormente é organizada a equipe das próximas reuniões.
  5. Tolerância à incerteza: devem ocorrer reuniões frequentes nos primeiros 10 a 12 dias de tratamento, para evitar decisões precipitadas.
  6. Continuidade psicológica: deve ser garantida em todas as etapas do tratamento.
  7. Dialogismo: o diálogo entre as pessoas nas reuniões deve ser garantido como foco do tratamento, sendo importante para a tomada de decisões.

O uso dessa metodologia para o tratamento de pessoas com o primeiro episódio de psicose foi associado à redução de sintomas crônicos e ao uso mínimo de medicamentos. A possibilidade de gerar diálogos em reuniões conjuntas, respeitando a comunicação entre todos os envolvidos, tem permitido não tomar decisões precipitadas, fazendo com que o paciente desempenhe um papel mais importante na determinação de como proceder no seu tratamento.

Percebe-se então que o Diálogo Aberto é uma forma terapêutica que foca no rompimento do isolamento do paciente, criando uma linguagem em que tanto o paciente como as pessoas próximas a ele possam ser ouvidos. Dessa forma, a abordagem focada no diálogo faz com que o paciente e sua rede social desempenhem um papel importante na decisão de como proceder o processo de tratamento.

Essas abordagens citadas parecem revolucionar a forma de atendimento clínico ao paciente com transtornos mentais, o que nos lembra as abordagens defendidas por Nise da Silveira, uma pioneira na psiquiatria brasileira, cujo trabalho revolucionário ajudou a promover uma compreensão mais compassiva e inclusiva da saúde mental e a transformar as práticas de tratamento psiquiátrico no país.

Em contraste com as práticas tradicionais que frequentemente envolviam métodos invasivos e desumanos, Nise acreditava na importância de tratar os pacientes com respeito, dignidade e empatia, através da sua abordagem humanizada no tratamento de pacientes psiquiátricos. Uma das suas contribuições mais significativas foi a ênfase no potencial terapêutico da expressão artística no contexto do tratamento de transtornos mentais, onde os pacientes podiam expressar seus sentimentos e emoções por meio da arte, proporcionando uma forma de comunicação alternativa e uma maneira de explorar seu mundo interior.

Crítica do modelo asilar que predominava na psiquiatria, Nise defendia a reintegração dos pacientes à sociedade e a criação de espaços terapêuticos mais acolhedores e inclusivos, enfatizando a importância do ambiente institucional na saúde mental dos pacientes e promovendo assim a participação ativa destes na gestão de sua própria terapia.

Dessa forma, o trabalho e as ideias de Nise da Silveira tiveram um impacto duradouro na psiquiatria brasileira, inspirando gerações de profissionais de saúde mental a adotar uma abordagem mais holística e humanizada no tratamento de transtornos mentais.