Produção de subjetividade na era capitalocêntrica – artigo

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V!19 | THE CONSTRUCTION OF INFORMATION | IDENTITY | PHOTOGRAPHY CITY

Victor Sardenberg é Arquiteto e Urbanista e Mestre em Arquitetura e Desenho Urbano. É Pesquisador Associado em métodos digitais em Arquitetura na Universidade Leibniz, em Hannover, Alemanha. Estuda curadoria de arte pública, estética e computação, e métodos de desenho e fabricação digital.

Beatriz Chnaiderman é Bacharel em Psicologia e membro psicanalista do Lacanian Field Forum, São Paulo. Seus interesses de pesquisa concentram-se em psicanálise e estética.

SARDENBERG, V.; CHNAIDERMAN, B. O monumento ao € e o capitalocentrismo. V!RUS, São Carlos, n. 19, 2019. [online]. Disponível em: https://www.nomads.usp.br/virus/virus19/?sec=5&item=105&lang=pt. Acesso em: dd/mm/aaaa

ARTIGO SUBMETIDO EM 18 DE AGOSTO DE 2019

Resumo

Este artigo aborda o Monumento ao Euro, em Frankfurt am Main, Alemanha, como uma ferramenta para entender construção da informação e sua reprodução digital na produção de subjetividades na presente era capitalocêntrica. Ele explora os tipos de desejos que estão sendo formados pelas pessoas que compartilham fotos e selfies com o monumento nas mídias sociais e conclui com uma descrição de como o nosso novo sistema de valores centrado na geração de capital está forjando um novo tipo de subjetividade.

Palavras-chave: Capitalocentrismo, Selfies, Monumento, Euro, Subjetividades, Identidades

1 Introdução

A cidade de Frankfurt possui, por sua longa história, algumas características únicas. Desde os primeiros assentamentos em um ponto central e estratégico da Europa, a cidade sempre foi caracterizada como um ponto de encontro de diferentes povos. Em algumas partes, esse fenômeno é mais evidente. Por exemplo, nos pavilhões de feiras, uma tradição que vem do Século XVII, ou em seu aeroporto, o mais movimentado da Europa continental. Na virada do milênio, uma nova instituição passou a definir também a imagem da cidade: O Banco Central Europeu.

O Banco Central é um grande símbolo da unificação econômica da União Europeia. Os acordos e parcerias econômicas entre países europeus, no sentido de uma integração, datam de 1950 e, ao longo das décadas, ganharam a forma de uma unificação (SCHULZ-FORBERG, STRÅTH, 2010). Essa gradual mudança de enfoque, da integração à unificação, formalizada no Tratado de Maastricht (1992)1, implica a ideia de uma identidade europeia política, cultural e, sobretudo, como a própria história denuncia, econômica. O Banco Central Europeu, de 1998, é um marco simbólico desse processo.

Para celebrar a implantação do euro e seu respectivo banco central, o Frankfurter Kultur Komitee comissionou o artista Ottmar Hoerl para criar um monumento (Figura 1). O Komitee é uma organização sem fins lucrativos cujo objectivo é “trazer o euro para o coração das pessoas” e incentivar a “cidadania corporativa” (FRANKFURT, 2019).

Fig. 1: O Monumento ao Euro sendo fotografado em Frankfurt am Main. Fonte: os autores, 2019.
O local escolhido para o monumento comissionado é intrigante por duas razões. Primeiramente, o Monumento ao Euro é localizado em frente ao edifício que originalmente abrigou o quartel general do Banco Central, quase como um letreiro de super-mercado. Segundo, ele foi instalado em um parque linear chamado Wallanlage, que é o resultado da demolição do muro que circunscrevia a cidade até o início do Século XIX. Há dezenas de esculturas e monumentos em homenagem a figuras como Beethoven, Schiller e Bismarck, rodeados por árvores e caminhos românticos. Alguns dos trabalhos de arte expostos são de artistas renomados, como Sol Lewitt e Max Bill.

Todavia, nesse local culturalmente profícuo, o monumento mais popular não é em homenagem a alguma figura pública que tenha feito uma contribuição imensurável para a sociedade ou uma obra de alguém que faça parte do star system da arte. O monumento em questão, feito de aço e acrílico, emite luz durante a noite para o deleite dos locais e dos inúmeros turistas e visitantes. Para qualquer indivíduo sob a influência do capitalismo neoliberal, o que é representado é claro: o símbolo do euro (€), a moeda comum da União Européia.

Em 2015, em uma entrevista para o jornal local, o artista Ottmar Hoerl, que concebeu o monumento, declarou: “É o símbolo da cidade mais fotografado e mais divulgado, é o trabalho de arte mais difundido e é um ímã para turistas” (JAEGER, 2019, s.p.). Essa declaração enigmática motiva este artigo. Embora não existam dados para confirmar essa afirmação, pode-se observar o magnetismo dessa escultura: um excesso de fotos e selfies com o monumento disseminados pela internet em quantidade muito maior do que com as demais renomadas esculturas que estão ao redor. O que esse excesso pode significar? Estamos diante de um caso muito particular de construção de informação que vai da implantação do monumento à sua multiplicação pelas vias digitais. Em nossa realidade híbrida, tanto física como digital, a construção da informação e da imagem da cidade acontece tanto no espaço urbano quanto nas mídias sociais digitais.

O desenho do símbolo do Euro não é um trabalho de Ottmar Hoerl, mas o resultado de um concurso internacional realizado em 1999. O artista decidiu sobrepor ao símbolo € estrelas desordenadas, que representam os países que originalmente aderiram à moeda compartilhada. O que é visto: o círculo aberto, incompleto; duas linhas horizontais que nos remetem aos arranha-céus ao redor; algumas estrelas na parte de dentro do círculo e a maioria delas do lado de fora. Nenhuma estrela foi adicionada após a conclusão do monumento, apesar de novos países terem aderido à zona do euro desde então. O monumento foi finalizado e instalado em 2000 e o euro começou a circular em papel no ano seguinte. O euro foi levado ao coração das pessoas antes de chegar aos seus bolsos, para utilizar os termos do Komitee.

O monumento tinha uma irmã caçula, uma versão de apenas 5 metros de altura que estava instalada no aeroporto de Frankfurt. Sintomaticamente, durante a Grande Recessão causada pelo colapso financeiro de 2008, ela foi desmontada e hoje se encontra em um depósito. O Monumento ao Euro quase encarou um destino semelhante. Após anos sem manutenção, seu estado era crítico. Alguns de seus painéis de acrílico estavam quebrados e nem todas as luzes funcionavam mais.

O ano de 2015 foi um momento decisivo para a moeda, a cidade de Frankfurt e o monumento. Diante de seu declínio, o custo para recuperar o monumento era de cerca de 60.000€ (BUELL, 2015). No mesmo ano, a crise financeira na Grécia atingiu seu ápice, quando saques de contas bancárias foram limitados a um pequeno valor diário. O conflito era claro. Havia a opção de vender o monumento por cerca de um milhão e meio de euros (NIELSEN, 2012). Esse ano também marcou a inauguração da nova sede do Banco Central Europeu. A obra prima, projetada por Coop Himmelb(l)au, custou 1,4 bilhão de euros e o seu evento de inauguração, que atraiu ministros de finanças e chefes de estado de todas as nações da zona do euro, foi o estopim para violentas manifestações nas ruas de Frankfurt. Um grupo policial foi designado com o objetivo específico de proteger o monumento a todo o custo, enquanto viaturas eram incendiadas no distrito bancário. Responsável pelo monumento, o Frankfurter Kultur Komitee dispôs dos fundos para a reforma da escultura, garantido que esta continuaria na função de foco de selfies por pelo menos mais alguns anos.

O desejo de proteger o monumento e de “trazer o euro para o coração das pessoas” evidencia algo sobre a história da moeda em questão: a implementação de uma imagem da Europa unificada que nunca existira. As rivalidades e diferenças entre países já estavam constituídas há gerações, apesar de alguns acordos econômicos existirem desde a metade do século XX. A União Europeia unificou países cujas populações ainda incluíam sobreviventes das duas guerras mundiais que experimentaram fortemente a inimizade entre vizinhos. Eis onde se insere o Monumento ao Euro, grande, pesado, literal, localizado em Frankfurt, o centro (bancário) da Europa.

O fato de que monumento seja, possivelmente, o objeto mais fotografado de Frankfurt confirma o sucesso dessa empreitada: o euro está no coração das pessoas, ao menos para a maioria delas. O euro, sobrepondo dinheiro e identidade, é a moeda que une e pacifica. Esse monumento é um caso privilegiado para se pensar as subjetividades na era do liberalismo e da digitalização.

2 Selfies e mídias sociais

Entre as repetitivas fotografias ao redor do monumento que podem ser vistas em sites como o TripAdvisor, a maioria são auto-retratos da nossa era: selfies. O fenômeno social, que se tornou a palavra do ano de 2013 para o dicionário Oxford, denomina as fotografias que um sujeito faz de si mesmo, normalmente com um smartphone ou uma webcam, e compartilha em um site de mídia social (KILLINGSWORTH, 2013). Manovich e Tifentale elencaram múltiplas descrições do fenômeno, a partir de diversas conotações:

Na imprensa popular, a selfie foi logo rotulada como ‘um sintoma do narcisismo produzido por mídias sociais’ (PEARLMAN 2013), ‘uma nova maneira de se comunicar através de imagens’ (RAWLINGS, 2013), ‘a masturbação da auto-imagem’ (MARCH, 2013), ‘um ‘mini-eu’ virtual’ (CLARK, 2013), entre outros. Outros autores propuseram que as selfies, entre outras coisas, podem funcionar como meios de auto-expressão, a construção de uma imagem positiva, uma ferramenta para auto-promoção, um pedido de atenção e amor, e uma maneira de expressar pertencimento a uma certa comunidade (CEP, 2013; LEARY, 2013; NELSON-FIELD, 2013). (MANOVICH; TIFENTALE, 2015, s.p., tradução nossa)

Esse gênero específico de fotografia tem o objetivo particular de ser compartilhado em mídias sociais. O smartphone é um tipo excepcional de câmera fotográfica porque ele também integra os meios de compartilhamento e divulgação de seu conteúdo. Se Flusser está correto e “não há atividade diária que não tenha aspiração a ser fotografada e filmada” (FLUSSER, 2005), a selfie é a performance nas mídias sociais com esteróides.

Por séculos, artistas tem pintado auto-retratos, como o Auto-retrato em Espelho Côncavo (c. 1524) de Parmigianino, ou posado para auto-retratos, como a série Untitled Film Stills (1977 – 80) da Cindy Scherman. De acordo com Jill Walker Rettberger (2014, s.p., tradução nossa), “as selfies de hoje se diferenciam por serem um gênero verdadeiramente vernacular. Raramente elas são expostas em galerias; em vez disso, elas são compartilhadas com amigos e seguidores em mídias sociais”.

Aparentemente, fazer selfies e compartilhá-las é o que produz o real. Apenas se esteve em Copenhagen se há uma selfie com a escultura da sereia no porto. Alguém só foi ao Louvre se tirou uma selfie com a Mona Lisa, ou só esteve em um show do Radiohead se tirou uma selfie durante a execução de Creep. A realidade só pode ser mediada e realizada através de pixels. Alguém só esteve em Frankfurt se tirou uma selfie com o símbolo do euro.

Esse uso da obra de arte como extensão do eu nos remete à análise de Walter Benjamin em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1936):

Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução (BENJAMIN, 1985 [1936], p. 168).

Para o autor, a reprodutibilidade acarreta a perda da aura, aquele elemento que tornaria “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto de esteja” (BENJAMIN, 1985 [1936], p. 170, tradução nossa). Estamos diante de uma crise da autenticidade, já que a própria escultura foi feita sem aura, a partir de materiais industriais e com um formato que nos remete ao digital. Analisando a linha de trabalho de Ottmar Hoerl, a reprodutibilidade de suas esculturas é uma marca registrada. A suposta arte democrática abre os nossos olhos para a crise da autenticidade da arte e, certamente, dos sujeitos.

A instalação dessa grande escultura escancara essa nova condição das identidades: saber-fazer (savoir-faire) – termo de Lacan para designar a tarefa do sujeito diante do inconsciente (LACAN, 1975-1976) – com a falta da aura, da singularidade das coisas e de si mesmo.

3 As subjetividades $

Para analisar como um sujeito se vê através dos pixels das mídias sociais, a formulação lacaniana do estádio do espelho (LACAN, 1966) é uma ferramenta possível. Para Lacan, a produção do eu envolve a identificação a uma imagem de si unificada: o espelho. Todavia, ela nunca é completa, sempre deixa restos. O espelho não é capaz de ser a última resposta para a produção de si. É uma ilusão, uma alienação necessária no processo de unificação do corpo: “Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua destinação social, na linha da ficção” (LACAN, 1999 [1966], p. 43, tradução nossa). A importância dessa constatação é a seguinte: a alienação é um processo fundamental do desenvolvimento do sujeito falante. Ou seja, não é propriamente a alienação que define a subjetividade na era do capitalismo digital.

Na alienação na imagem do espelho há perda, já que nem tudo cabe ali, ou seja, nem tudo é redutível a uma organização imagética unificada. Logo, a história do sujeito será a articulação possível, na linguagem, ou seja, no social, dessa falta fundamental. A linguagem carrega e articula a falta, faz dela o pilar do contrato social, dos laços.

É na medida em que a digitalização das identidades é sobretudo forjada através de imagens e quase sem narrativas, que podemos nos preocupar com o contrato social. Em O Narrador (1936), Benjamin opõe narrativa e informação para pensar a condição do homem moderno e aponta: “E não é que constatamos, após o armistício, que os combatentes retornavam mudos do front, não mais ricos, e sim mais pobres de experiência comunicável?” (BENJAMIN, 1985 [1936], p. 56, tradução nossa).

A pobreza da experiência comunicável, para Benjamin, tinha relação com a barbárie. A comunicação, a narrativa, a transmissão do saber entre as gerações é o próprio tecido do pacto social, aquele que permite articular a falta fundamental de cada um. Por outro lado, a informação, onde inserimos as imagens digitalizadas como parte do eu, só tem valor no instante mesmo em que é produzida, como as notícias do jornal. Ela coloca o sujeito em estado de alienação social e mesmo temporal, joga-o no instante sem os recursos da história, propõe completá-lo, dar-lhe identidade, colocando-o em estado de perda.

A produção da identidade europeia pela imagem sólida do euro é um processo imagético semelhante: ele tenta unificar, em um único símbolo, identidades múltiplas e incongruentes. Sempre ficam restos para fora dessa imagem, que se tornam mais evidentes quando nos deparamos com eventos como o Brexit e a crise dos refugiados. É uma identidade que corta a experiência narrativa. Como contar o que se passou em 1939? Como integrar a inimizade dos avós para com os países vizinhos que lhes furtaram parentes e amigos na guerra? Os relatos familiares se perdem em uma grande e pesada escultura que afirma que agora há unificação e paz.

Propomos a leitura de que essa identidade visual sem aura e sem história encontrou sujeitos que já não sabiam se comunicar devido ao excesso de informações que escondiam o incomunicável da barbárie do mundo capitalista.

O Monumento ao Euro possui um grau a mais de perversidade. É, em si, o símbolo do dinheiro e, assim, é celebrado. A sociedade contemporânea

[…] é habitada por […] subjetividades definidas por substância (ou substâncias) que suplementam seus metabolismos e por desejos que alimentam as ações dos sujeitos e pelos quais eles se tornam agentes. Então falaremos de sujeitos Prozac, Sujeitos cannabis, […] sujeitos Viagra, Sujeitos $… (PRECIADO, 2013, p. 35, tradução nossa).

Esse processo culmina na produção industrial de subjetividades alienadas em identidades passageiras que colocam os sujeitos em estado de perda. O Monumento ao Euro, indiscutivelmente, se oferece como um desses suplementos identitários.

Desde seus primeiros desdobramentos, o capitalismo melhorou as condições materiais em algumas partes do mundo como um efeito colateral da sua acumulação. O aumento do bem-estar nunca foi o seu objetivo. O único produto acabado da acumulação de capital é um tipo particular de subjetividade sem autenticidade, alienada em informações imagéticas digitalizadas que perdem seus valores em minutos. Além disso, em seu último desdobramento neoliberal, o capitalismo se tornou até mesmo incapaz de produzir qualidade de vida como um efeito colateral.

As organizações sociais são compostas de duas camadas: a esfera macropolítica, que consiste no que tradicionalmente entendemos como política, e a esfera micropolítica, onde a produção de subjetividades opera. De acordo com a psicanalista Rolnik (2018), é no modo de subjetivação que um regime produz sua consistência existencial, sem a qual ele não se sustentaria. É pela força criadora que um regime pode se sustentar (ROLNIK, 2018). É nesse ponto que podemos localizar o papel o Monumento ao Euro nesse jogo de forças: ele silencia, unifica pela não-autenticidade e isso é interessante ao neoliberalismo, na medida em que o capital pode circular independentemente da experiência cotidiana dos sujeitos.

Os perigos dessa alienação das massas já foram analisados por Freud em 1921, no texto Psicologia das massas e análise do ego2. Ao se propor a pensar como é possível que um grupo de indivíduos distintos, com histórias, gostos e soluções edípicas diferentes, se submetam à manipulação de um só líder, Freud afirma: “um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns aos outros em seu ego” (FREUD, 2006 [1921], p. 126). Na transitividade dos objetos oferecidos pelo capitalismo neoliberal, o valor dessa afirmação de Freud está em apontar para o perigo do aparecimento de grandes líderes que ocupem esse lugar idealizado devido ao seu carisma e suas promessas de realização. Na fragilidade dos laços e da própria experiência, os sujeitos podem encontrar um lugar sólido para definir quem são e que lugar devem ocupar no mundo nos movimentos de massa totalitários.

4 Conclusões

Há um novo tipo de subjetividade em cena. Se, na renascença, o humano era o centro e a medida para o universo, nós inauguramos agora um sujeito que centra o mundo em outra construção: o capital. De acordo com Haraway (2018), o capitalocentrismo e a sua era geológica, o capitaloceno, “[…] tem suas consequências, suas materialidades, já marcadas nas rochas, areias, águas e carnes dos terrenos, nas assinaturas nucleares e químicas, nos gases de efeito estufa, nos quentes e ácidos mares.” (HARAWAY, 2018, p. 80, tradução nossa).

Jean-Frainçois Lyotard (1979), já considerava a condição pós-moderna como aquela em que a informação é o valor em circulação. Qualquer saber só tem espaço se puder ser traduzido em informação: “a sociedade não existe e não progride a não ser que as mensagens que nela circulam sejam ricas em informação e fáceis de decodificar” (LYOTARD, 2011 [1979], p. 6). Essa perspectiva nos permite concluir algo sobre a função do Monumento ao Euro na unificação da identidade europeia: trata-se uma informação visual facilmente decodificada posta em circulação. A construção e disseminação dessa informação fortalece os alicerces da imagem da Europa unificada pela moeda, ou seja, pelo capital.

Observando as multidões sorrindo e tirando selfies com o Monumento ao Euro, podemos especular se Ottmar Hoerl, o artista que concebeu esse trabalho, tinha em mente que o símbolo do Euro funcionaria como um disparador do efeito massivo para a exposição das subjetividades capitalocêntricas, como se “o dinheiro em si tivesse se tornado uma substância psicotrópica abstrata e significante” (PRECIADO, 2013, p. 39, tradução nossa). O fato é que o artista escancarou a via da produção de identidades na era do capitalismo digital, operando nessa representação híbrida entre as imagens digitais e as manifestações físicas da cidade contemporânea.

Esta pesquisa convida a pensar sobre o que se pode fazer com as personalidades históricas cravadas ao redor do monumento, como lidar com o que a cidade significou nos anos 30 e como fazer justiça aos mortos e feridos que subjazem em cada uma das estrelas do monumento. Nada disso está na fotografia, cuja autenticidade merece apenas poucos minutos e deixa atrás de si essa ferida incomunicável.

Referencias

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BENJAMIN, W. Le narrateur. In: Essais 2. Paris: Denoel/Gonthier, 1983. 1. ed. 1936.

BUELL, T. Frankfurt’s Shabby Euro Statue Needs a Bailout. 2015. [Online] Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/frankfurts-shabby-euro-statue-needs-a-bailout-1428536944>. Acesso em: 15 Ago. 2019.

FLUSSER, V. Towards a Philosophy of Photography. Londres: Reaktion Books, 2005.

FRANKFURTER Kultur Komitee. Übers Uns. 2019. [Online] Disponível em: <https://www.frakk.de/ueber-uns/>. Acesso em: 25 Abr. 2019.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do ego. In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 18. Rio de Janeiro: Imago, 2006. 1. ed. 1921.

HARAWAY, D. Capitalocene and Chthulucene. In: BRAIDOTTI, R.; HLAVAJOVA, M. Posthuman Glossary. Londres: Bloomsbury Academic, 2018.

JAEGER, M. Das ist eine Beleidigung für Europa. 2015. [Online] Disponível em: <https://www.faz.net/aktuell/gesellschaft/frankfurt-euro-skulptur-kuenstler-ottmar-hoerl-im-interview-13534002.html>. Acesso em: 25 Abr. 2019.

KILLINGSWORTH, S. And the word of the year is… 2013. [Online]. Disponível em: <https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/and-the-word-of-the-year-is>. Acesso em: 15th August 2019

LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. In: Écrits I. Paris: Éditions du Seuil, 1999. 1. ed. 1966.

LYOTARD, J. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio. 2011. 1. ed. 1979.

NIELSEN, N. Euro sign sculptures in Frankfurt face uncertain future. 2012. [Online] Disponível em: <https://euobserver.com/institutional/117284>. Acesso em: 15 Ago. 2019.

PRECIADO, P. Testo Junkie: Sex, Drugs, and Biopolitics in the Pharmacopornographic Era. Nova Iorque: Feminist Press, 2013.

RETTBERG, J. Seeing Ourselves Through Technology: How We Use Selfies, Blogs and Wearable Devices to See and Shape Ourselves. Londres: Palgrave Macmillan, 2014.

ROLINK, S. Esferas da Insurreição: Notas Para Uma Vida Não Cafetinada. São Paulo: n-1 Edições, 2018.

SCHULZ-FORBERG, H.; STRÅTH, B. (2010) The Political History of European Integration: The Hypocrisy of democracy-through-market. Nova Iorque: Routledge, 2010.

TIFENTALE, A.; MANOVICH, L. Selfiecity: Exploring Photography and Self-Fashioning in Social Media. In: BERRY, D. M.; DIETER, M. Post-Digital Aesthetics: Art, Computation and Design. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2015.

VIGNES, D. Note sur le contenu et la portée du Traité sur l’Union européenne, signé \à Maastricht le 7 février 1992. Annuaire français de droit international, v. 37, p. 774-801, 1991.

1 “Na perspectiva do grande mercado de 1993, um rigor maior na coordenação das intervenções monetárias parecia indispensável” (VIGNES, 1992, p. 776).
2 Na tradução que utilizamos, Ich foi traduzido por ego. Porém, pode ser lido simplesmente como Eu.
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