
Nos próximos parágrafos, analiso o comércio e as relações internacionais a partir de uma hipótese sobre os pressupostos dos agentes diretamente envolvidos. Assim como todos os seres humanos, membros das elites econômicas e políticas relacionam-se com base em visões de mundo e suposições a respeito do estado geral das coisas, de si mesmos e dos fundamentos da realidade.
Isso envolve um coquetel de crenças compartilhadas de cunho político, religioso, filosófico e cultural. Paradoxalmente, somos céticos e cientes das lacunas onde nossas suposições florescem, ao passo que agimos como se a realidade intersubjetiva coincidisse exatamente com o real. O fato é que o real não é transparente para nossa percepção. Daí nossa angústia em sermos crentes por necessidade de algum conforto epistêmico e céticos por imposição ontológica.
A relação entre crença e ceticismo é dramática. Por exemplo, a crença de que o destino da humanidade é o apocalipse cria uma situação objetiva em relação aos vários desenlaces políticos e econômicos possíveis. Há algum tempo, observamos a atitude de multi milionários, bilionários, governantes e parlamentares em relação às perspectivas da crise das mudanças climáticas globais e ao risco de uma guerra mundial com uso de armas nucleares. Em vez de se organizar para evitar o pior, eles têm se preparado para ele.
Se as pessoas que pensam controlar os recursos tecnológicos disponíveis buscam alternativas para a sobrevivência pessoal e de suas famílias, de fato estão promovendo o “evento” para o qual pensam estar se preparando. Em vez de uma postura de cuidado, prevenção e mitigação do sofrimento humano nos diferentes cenários possíveis, parece que os agentes das elites econômicas e políticas mundiais abraçaram o niilismo e o desespero, apostando na queda da civilização. Não é realista acreditar que alguém possa sobreviver num cenário de ruptura da civilização, segundo critérios que não sejam absolutamente aleatórios.
A mera falência das trocas comerciais e o colapso da cadeia global de suprimentos implicaria na morte de centenas de milhões de pessoas num cenário de escassez de alimentos, medicamentos e ruptura da ordem institucional e jurídica. Aliás, num contexto de quebra do mercado futuro, que hoje está inflado em uma ordem de 700 trilhões de dólares em relação aos 70 trilhões da folha de pagamento mundial, um agravamento do risco de conflitos com uso de armas nucleares aumenta simultaneamente.
Isso explica por que, no Brasil, pessoas vêm sendo condenadas na justiça por ataques à ordem democrática. Cabe analisar por que, num contexto em que vigora a liberdade de expressão, condenações por discurso de ódio e ataque a instituições vêm se tornando necessárias.
A justiça, em regimes democráticos constitucionais, é imperfeita. Contudo, ao estabelecer uma norma legal, garante-se a estabilidade para a circulação da riqueza por meio das trocas comerciais e do respeito aos contratos. A complexidade da cadeia global de suprimentos e o peso do financiamento da produção através do mercado financeiro exigem a constante quitação de contratos comerciais, mantendo a produção em circulação e, desse modo, impulsionando a reprodução de mercadorias e capitais.
A ordem jurídica é tão crucial para a ordem econômica que observamos um fluxo constante de condenações em litígios criminais e econômicos em sociedades democráticas. Portanto, sempre existem pessoas pessoalmente descontentes com o sistema jurídico. No entanto, o respeito aos princípios legais beneficia a sociedade ou a maioria, ainda que em conflitos específicos os condenados possam, e quase sempre se sintam, injustiçados.
A noção de justiça aqui não é religiosa ou cósmica, mas meramente consensual e relativa ao bem-estar geral. Uma condenação por homicídio ou uma multa de trânsito não pode restituir ou apagar um evento passado; no máximo, visa reequilibrar expectativas e condicionar ou prevenir o risco de generalização da violência e do crime. Em resumo, o sistema judiciário existe para dar consistência à nossa crença na ideia de responsabilidade, como a consciência de que não há como evitar alguma ou qualquer consequência de nossas ações, sendo a impunidade o que nos traz mais prejuízos coletivos em todos os cenários possíveis.
Assim, a despeito do senso comum, a justiça não possui objetivos relacionados à culpabilidade moral ou vingança. É simplesmente melhor para todos que a vontade consensual e consciente da maioria, expressa na constituição e em suas leis derivadas, seja o guia, em lugar das opiniões pessoais, sejam elas filosóficas ou religiosas. Por isso, a liberdade de expressão e a tolerância têm como limite o ataque à vida e à própria democracia em que a liberdade de expressão pode existir.
No Brasil, uma corrente política tem reivindicado a liberdade de expressão para se opor ao Supremo Tribunal Federal e aos governantes de um determinado espectro ideológico. Isso precisa ser coibido, seja no âmbito das trocas comerciais, seja no âmbito dos direitos humanos, porque em uma sociedade onde a opinião se sobrepõe ao consenso democrático, a ordem institucional desaba em autoritarismo e totalitarismo. A violência generalizada se estabelece com a perspectiva de institucionalização da força e opressão como alternativa à desordem. Foi basicamente nesse processo que regimes fascistas e totalitários se instauraram na primeira metade do século XX.
Agora, neste início de século, vemos uma gradativa instauração da suspeita sobre a ordem política e econômica que em parte visava superar o perigo de uma Terceira Guerra Mundial após o advento das armas nucleares em agosto de 1945. Observamos evidências de que os agentes das elites econômicas mundiais investem em abrigos anti nucleares para suas famílias, ao passo que multimilionários buscam financiar a colonização de Marte. O que isso diz de suas crenças e expectativas? Para que pretendem usar os recursos financeiros e materiais que pensam ter sob controle?
Pode ser que seja possível, com mais desenvolvimento tecnológico em algum futuro imaginável, colonizar outros planetas. Contudo, precisamos sobreviver como civilização para executar os passos desse desenvolvimento tecnológico. Esse comportamento indica uma renúncia à possibilidade de uma coexistência próspera e comum para toda a humanidade no único lugar deste vasto universo em que a vida humana, ou como a conhecemos, tem se mostrado possível.
Diante da análise sobre a influência das crenças das elites na configuração de profecias auto-realizáveis, torna-se premente reconhecer que a busca por uma coexistência pacífica e sustentável não pode ser submetida à lógica do desespero ou do niilismo. A insistência em cenários de ruptura, impulsionada pela crença no apocalipse e pela preparação para o pior, não apenas negligencia a responsabilidade coletiva, mas ativamente pavimenta o caminho para a própria desagregação civilizacional. A defesa da ordem jurídica e do consenso democrático, em contraste com a anarquia das opiniões individuais e dos discursos de ódio, emerge como o alicerce fundamental para a manutenção da prosperidade e para a garantia de um futuro no qual o desenvolvimento tecnológico sirva à vida humana em seu único lar conhecido, em vez de ser um escape ilusório para uma elite.
Referências e Influências Filosóficas
Epistemologia e Realismo Crítico: A discussão sobre a percepção da realidade e a angústia entre ceticismo e crença remete a debates epistemológicos clássicos. A ideia de que “o real não é transparente para nossa percepção” dialoga com pensadores como Immanuel Kant, que postulou a diferença entre o fenômeno (o que percebemos) e o númeno (a coisa em si), e com correntes do realismo crítico que enfatizam a natureza interpretativa do conhecimento humano.
Sociologia das Profecias Auto Realizáveis: O conceito central do texto é explicitamente tirado da sociologia, popularizado por Robert K. Merton. Ele descreve como uma falsa definição de uma situação evoca um novo comportamento que faz com que a falsa concepção original se torne verdadeira. Os argumentos aplicam essa teoria ao comportamento das elites políticas e econômicas.
Filosofia Política e Contratualismo: A defesa da ordem jurídica, da constituição e do consenso democrático como base para a sociedade e para as relações comerciais ecoa as teorias do contratualismo social, presentes em pensadores como John Locke, Jean-Jacques Rousseau e, mais modernamente, John Rawls. A ideia de que a justiça visa o bem-estar geral e a estabilidade social, em vez de punição moral, também se alinha com perspectivas utilitaristas e consequencialistas.
Niilismo e Existencialismo: A menção ao “niilismo e desespero de apostar na queda da civilização” reflete preocupações existencialistas sobre a perda de sentido e valores, discutidas por filósofos como Friedrich Nietzsche e Jean-Paul Sartre. A crítica à renúncia à coexistência próspera e comum para a humanidade confronta a ideia de que a vida não possui valor intrínseco.
Ética e Responsabilidade Global: A discussão sobre a preparação para o pior em vez de evitá-lo, especialmente em relação às mudanças climáticas e à guerra nuclear, toca em questões de ética global e responsabilidade intergeracional. Isso se conecta a argumentos de filósofos ambientais e éticos que enfatizam a obrigação moral de proteger o planeta e a humanidade.
Crítica aos Totalitarismos e Autoritarismos: A referência à instauração de regimes fascistas e totalitários no século XX, impulsionada pela sobreposição da opinião individual ao consenso democrático, conecta-se a análises filosóficas e políticas sobre a fragilidade da democracia e os perigos do extremismo, presentes em obras de Hannah Arendt, Karl Popper, entre outros.