Os seres humanos são, fundamentalmente, seres do cuidado, da solidariedade e da reciprocidade altruísta. Falar de nossas habilidades e capacidades implica em uma referência ao que os indivíduos podem através da teia de relações em que estão imersos. Nossa individualidade é o efeito secundário de nossas conexões, complementaridades, dependências e corresponsabilidades.
Segundo David Graeber a escravidão, a forma literal da objetificação do ser humano só foi possível a partir da desconexão da pessoa escravisada de sua rede de relações familiares e sociais. Somente a partir dessa forma de violência é que se tornou possível o absurdo de se tomar um ser humano como precificável, como objeto e, em muitos casos, a medida de valor monetário que expressamos quando dizemos que uma propriedade equivale a tantas cabeças de gado. Literalmente, os antropólogos e arqueólogos têm encontrado as primeiras formas de moeda em operações de contabilidade que registravam débitos e créditos. Ou seja, a primeira moeda humana foi um registro contábil tão virtual quanto o Bitcoin.
Tentar quantificar o valor de alguma coisa em vidas humanas consiste no absurdo de inverter o valor inerente a todas das atividades humanas: tudo que tem valor é efeito de nossos gestos, o que convencionamos chamar de trabalho, mas também toda parte invisível da economia que é responsável pelo contínuo processo de fazer surgir e tornar humanos uma quantidade cada vez maior de nascidos homo sapiens.
Nossas relações de interdependência eram mais evidentes no mundo dos caçadores coletores. Com o surgimento da agricultura, do Estado e da religião, como ferramenta estatal, ao longo dos últimos 5 mil anos, o efeito dos gestos de solidariedade ficaram em segundo plano nas narrativas a respeito de nossa natureza. Não obstante, somos o efeito incontável dos cuidados e mimos, carinhos e amorosidades familiares e comunitários, sem os quais, não poderiam existir seres humanos viáveis, nem sociedades ou civilizações.
É nesse contexto que penso o complexo industrial da saúde, representado pelo Sistema Único de Saúde – SUS, em oposição ao complexo militar industrial norteamericano. O SUS serve como instituição social e política de afirmação a partir de pressupostos de um contrato social que valoriza a vida como medida para os demais valores. O complexo militar industrial dos EUA existe sob o pressuposto da suspeita em relação ao caráter fundamental da humanidade.
Costumamos pensar isso como realismo. Mas o fato é que este suposto realismo é baseado no fato que nosso instinto de destruição serve para estabelecer relações comerciais favoráveis, unilateralmente, aos que detém o poder das armas como forma de submeter as coletividades em suas relações de reciprocidade e solidariedade.
Deveria ser evidente que o interesse egoísta de uma pessoa em São Paulo, em Chicago, em Campo Grande ou em Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, é na verdade ilusório em relação aos vínculos tecidos por entre o sistema de produção globalizado. Nossa sobrevivência está ancorada num sistema frágil como um castelo de cartas onde todos temem a ruína em termos individuais, mas em que, de fato, o que ameaça é a tragédia dos comuns em todo o campo social.
O complexo industrial militar e o complexo industrial da saúde são extremos de duas formas opostas de conceber a natureza e o reconhecimento formal da dignidade da pessoa humana como fundamento da maioria das constituições no ocidente.
Perguntas melhores precisam ser formuladas e respondidas a respeito dos modos de vida no capitalismo global. As relações comerciais promovem uma distorção grave na percepção que temos do significado do individualismo e do comunismo real na vida das pessoas.
Realizar e concluir tarefas coletivas exige um tipo de comunismo que, nas palavras de David Graeber, não é utópico, mas sim típico em qualquer atividade humana colaborativa. O cálculo da vantagem econômica ou do lucro está ausente da maioria dos gestos significativos. No entanto, em todos os lugares há um consenso sobre a natureza humana que é contrário ao fato de que dependemos uns dos outros e nos constituímos pela gratuidade e solidariedade.
Desse modo é desumano que conhecimento e vivências cheguem ao absurdo de serem tratados como mercadorias precificadas em um mercado de consumo. O valor é um complexo de signos que dão forma à expressão do espírito humano. Valores imateriais não podem ser expressos na forma de um cálculo quantitativo. De alguma forma o fenômeno humano tangencia os infinitos e é refratário ao mero cálculo de interesses.